Roberto Rodrigues é um daqueles líderes inspiradores, que reúne pessoas e agrega conhecimento por onde passa. Por isso, até no ambiente de extrema polarização política do Brasil, continua seguro para lançar novos projetos para o agro, no auge nos seus 80 anos de idade.
Em entrevista exclusiva ao AgFeed, o ex-ministro da Agricultura contou que está começando uma nova fase. Em janeiro deste ano deixou oficialmente o cargo de coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (GVAgro). Ainda assim, a FGV o declarou Professor Emérito, e se manterá envolvida nos projetos idealizados por ele.
O que mais entusiasma Rodrigues neste momento é o projeto chamado "Agro Brasil 50”, um estudo aprofundado sobre como vai se comportar a produção e o consumo mundiais de alimentos, energia e fibras nos próximos 30 anos.
A iniciativa envolve o Centro de Agricultura Tropical Sustentável da USP, sediada na Esalq, em Piracicaba, do qual o ex-ministro faz parte, como presidente do conselho consultivo. O projeto também envolve a própria GVAgro e pretende contar com o apoio dos 38 adidos agrícolas brasileiros.
"Queremos saber quem vai produzir o que e quem vai consumir o que neste futuro, quais são os cenários desenhados para este período e como o Brasil se insere neste cenário, considerando tanto as questões internas quanto internacionais", explica Rodrigues.
Ele destaca que não se trata de um projeto para governos, é um diagnóstico e um prognóstico. "A partir dele até poderão surgir planos e políticas públicas e privadas, mas este não é seu objetivo original", diz. A conclusão do estudo está prevista para daqui a dois anos.
Confira alguns trechos da conversa que tivemos com o ex-ministro com os detalhes deste plano e também dos outros dois projetos que começa a implementar.
Qual sua visão deste Brasil em 2050?
Temos uma expectativa de que a gente vá para 500 milhões de toneladas de grãos e um aumento grande na produção de proteína animal de forma sustentável. Isso vai exigir alguns temas centrais no Brasil. O mais importante é logística e infraestrutura. Esse ano mesmo tivemos problemas de falta armazéns, algo dramático. O produtor de soja está vendendo a preços muito menores do que estava dois meses atrás porque a colheita é gigantesca e não tem armazém, então tem que vender. O comprador sabe disso e então relaxa o preço.
Isso afeta também o milho...
No milho vai ser a mesma coisa, a segunda safra vai ser muito boa, porque o tempo ajudou. Mas o armazém está cheio de soja. Então vai fazer o que com o milho? O mercado já antecipou isso e derrubou o preço do milho brutalmente, cerca de 40% em dois meses. E tudo isso numa safra atual que é estimada em 300 milhões de toneladas. Se chegarmos a uma safra de 500 milhões de toneladas, teria que triplicar rede de armazenagem e silos. Por isso que este estudo vai trazer indicativos neste sentido. Logística e infraestrutura é o tema mais importante, de longe.
Qual o segundo tema que deve ser priorizado?
São os acordos comerciais. Não adianta eu produzir 500 milhões de toneladas de grãos se não tiver comprador consolidado, firme. A busca por mercados é um processo central. Não apenas as grandes, como União Europeia e Mercosul, muito importante, mas também Brasil-China, Brasil-Indonésia, temos que fazer acordos comerciais que nos garantam um crescimento sustentável na produção.
E a questão das mudanças climáticas?
Este é mais um ponto prioritário, que tem a ver com uma discussão muito ampla sobre quais são as regras que a Europa está criando. Provavelmente haverá regras parecidas na própria China. Eu acho que vai haver um recrudescimento do protecionismo, vai haver um “neoprotecionismo" agrícola no mundo, usando o que é legítimo, como é a defesa do meio ambiente, como barreira comercial. Mas não nos interessa se é barreira comercial ou não, e sim o que é legítimo. Nós temos que ter uma atividade sustentável mesmo, com uma produção tecnicamente bem evoluída, mas ao mesmo tempo com uma visão diplomática legítima, impedir o argumento legítimo para uma demanda ilegítima. Por isso, é muito importante esta questão da sustentabilidade, ligada a mudanças climáticas, uso da terra, desmatamento, esta temática muitas vezes complicada.
"Vai haver um 'neoprotecionismo' agrícola no mundo, usando o que é legítimo, como é a defesa do meio ambiente, como barreira comercial"
Há outros temas centrais?
Sim, o quarto tema é tecnologia e a Embrapa entra nisso. Foi criado o SNPA, Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária, um grupo de trabalho que está cuidando disso. Estamos querendo reconstruir este sistema de pesquisa agropecuária sob a liderança do Silvio Crestana, que é um técnico reconhecido, respeitado, já foi presidente da Embrapa.
Como seria essa reconstrução?
A ideia é criar mecanismos que reduzam a centralização das decisões da Embrapa na sede, transferindo poder de decisão para os centros. Eu trabalho pela criação de um fundo privado de desenvolvimento tecnológico. A quem interessa a pesquisa agropecuária? Ao produtor rural. Por isso, ele pode ajudar a bancar isso, não é só o estado. Poderia ser criado um fundo a partir de cooperativas agropecuárias e depois ir para a indústria de alimentos também, criar um fundo amplo para financiar a pesquisa agropecuária.
Estes serão os pontos principais do Agro Brasil 2050?
Estes são os quatro pontos centrais, mas há também um quinto ponto que é a renda, muito mais ligado a política pública. Eu chamo de "o quadrado da renda”. Eu acho que a base do quadrado é o seguro rural. Ele tem duas vertentes positivas. De um lado, nenhuma seguradora vai segurar um agricultor que não use tecnologia. Então o seguro puxa a tecnologia, que é segundo lado do quadrado. Por outro lado, ele habilita banco privado a investir em agricultura, fica mais independente do banco público, por isso o terceiro do quadrado é o crédito. O quarto é o programa de garantia de renda, que o governo tem que fazer. Eu imagino que o nosso estudo vai evoluir para indicar isso, que nós precisamos destes cinco pontos principais: logística, acordos comerciais, sustentabilidade, tecnologia e renda. Há diversos outros, claro, mas estes eu suponho, quando você me pergunta o que eu vejo para 2050, eu vejo que estes pontos serão principais.
Em relação ao consumo e demanda no mundo, o que acha que vai acontecer?
Eu não acho ainda, quero buscar saber por meio deste trabalho. Mas tem coisas óbvias como por exemplo a Ásia. China e Índia com 2,5 bilhões de habitantes, uma parcela significativa do mundo, se somar mais Indonésia, Japão, Coréia... Enfim, a Ásia vai ter um papel central no consumo.
E qual será o papel dela na produção?
Tudo o que nos é dado conhecer no momento é que ela não terá a capacidade de produzir o que vai precisar nos próximos 30 anos. Então, vai ter que importar muito. De onde vai importar? Eu acho que é do cinturão tropical do planeta, da América Latina, da África subsariana. Porque esta região é que ainda tem terra para aumentar a área plantada horizontalmente e na produtividade, verticalmente, pois ainda tem baixa produtividade. Nesta faixa tropical é que vai haver uma grande condição de crescimento da agricultura, para tudo, alimentos, energia e fibra.
Aí entra o Brasil...
O Brasil é o líder nesta área porque tem tecnologia, legislação, equipamentos, máquinas agrícolas, e algumas experiências que nós tivemos permitiram isso avançar. A Agrishow é o exemplo típico. Na primeira edição, em 1994, você ia para os Estados Unidos e via um trator lá, dava vergonha do que tinha aqui, era uma carroça mesmo. A Agrishow deu um banho na indústria de máquinas e equipamentos brasileiros. Quem não investiu em inovação tecnológica, morreu, acabou. A Agrishow hoje lança aqui no mesmo dia que na Austrália. Isso deu uma modernizada no parque tecnológico, que puxou o resto. Olho para a frente com um cenário muito bom para o Brasil e não vejo o país como um exportador de comida apenas. Vai exportar também tecnologia, de equipamentos, de indústria, de serviços, de inteligência.
O que mais podemos esperar deste estudo?
Eu digo que é um diagnóstico e um prognóstico. Por exemplo, tem uma notícia que a China vai plantar 10 milhões de hectares na África. Ninguém sabe se isso é verdade, mas eu não duvido. Se a China quiser fazer, tem dinheiro e tem estratégia para isso. Como nós plantamos 40 milhões de hectares de grãos, isso seria 25% da nossa produção. Então pode ser que este estudo revele algumas condições que interfiram na estratégia brasileira, é isso que quero fazer. Outro exemplo: vai que se descobre que o que vai ganhar o mundo realmente será a carne industrial, feita em laboratório. Isso tem efeito na nossa pecuária. Hoje sabe-se que é muito caro ainda, mas daqui a 10 ou 20 anos como vai estar? Vamos nos dedicar a diferentes cadeias, tudo que for alimento, energia e fibras, acho que cerca de 15 produtos.
Agora voltando a decisão de deixar a GV Agro para tocar outros projetos. Qual foi sua motivação?
Eu tenho mais dois projetos além desse. Um amigo, que já estava velhinho e me falava "para de trabalhar". E eu respondia: “quem não anda, desanda". Acho que você não pode parar de trabalhar e tem que estar sempre a serviço de alguma coisa grande. Eu, pessoalmente, fiz três coisas na vida: academia, agricultura e cooperativismo. No terceiro ponto eu fui presidente da Aliança Mundial de Cooperativas, não tinha mais nada, fundei os bancos cooperativos, acho que tive uma contribuição gigantesca. Na agricultura eu fui ministro da Agricultura do Brasil o que mais eu quero? E na academia eu fui o único doutor honoris causa da Unesp, em Ciências Agrárias, fui primeiro titular da Cátedra Luiz de Queiroz, da Esalq/USP de Piracicaba e agora professor emérito da FGV. Então não tenho mais ambição na vida, de modo que eu pretendo servir ao meu país. Quero aproveitar esta experiência, tudo que eu aprendi e gerar alguma coisa boa para o Brasil.
"Um amigo, que já estava velhinho e me falava 'para de trabalhar'. E eu respondia: 'quem não anda, desanda'"
Quais são os outros dois projetos?
Um é simples. Quero fazer um "agro storytelling”, gravar todos os meses uma pessoa da agricultura que tem mais de 80 anos. Ele vai contar a sua vida, fazer uma autobiografia gravada. Vamos filmar o camarada e eu vou coordenar as reuniões, fazendo perguntas. A série será feita com um grupo de umas 15 ou 20 pessoas, todos os meses. E no fim do ano ter um livro com 10 ou 12 biografias, autorizadas pela própria pessoa.
E o terceiro?
Este é o mais complicado, vai demorar um pouco mais de tempo. Toda a entidade de classe tem um presidente que é da classe. A Aprosoja tem um produtor de soja, a Abrapa, um produtor de algodão, a Orplana, alguém que planta cana. Mas todas as entidades também têm um executivo. O diretor executivo normalmente é um economista, ou um administrador, alguém que vem do mercado, que trabalha para aquele setor mas tem uma visão diferente do cara que é o produtor, presidente. Então. eu quero reunir um grupo de executivos para tratar de temas transversais.
Que temas seriam esses?
Não quero discutir o tema só da soja ou do algodão. Quero discutir a logística, ou a política comercial, ou o crédito, enfim, escolher os temas e trabalhar em cima disso. Eu quero criar este grupo de executivos, mas eu acho que vai ser um pouco mais complicado, porque não sei se as lideranças vão aceitar. Teremos que negociar um por um, vai levar um pouco mais de tempo. Mas o importante é ver o que é transversal para todo mundo. Por exemplo, a questão da pegada de carbono, as regras estabelecidas na Europa, como vamos trabalhar isso? Aí sim, poderemos elaborar propostas para apresentar aos governos. O projeto ainda não tem um nome definitivo, mas estou chamando de grupo intersetorial. Mas eu quero estruturar os dois primeiros projetos primeiro para depois chegar neste.