Em novembro do ano passado, oitenta prefeitos de Mato Grosso baixaram em Cuiabá no gabinete do governador Mauro Mendes. Eles se preocupavam com efeitos nefastos de empresas de soja e carne recusarem-se a comprar produtos de áreas recentemente desmatadas.
O governador fez discursos inflamados ameaçando retirar incentivos fiscais de empresas que insistissem na prática. Um projeto de lei aguarda para ser aprovado em Assembleia.
A ideia ganhou folego em outros estados como Rondônia, que através de uma lei também vedou benefícios fiscais a empresas que entre outras coisas participem de quaisquer acordos que imponham restrições à expansão da atividade agropecuária em áreas não protegidas por legislação ambiental específica.
Na Comissão de Agricultura da Câmara, uma deputada de MT aprovou um requerimento para instaurar Inquérito Administrativo ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) sobre a Moratória da Soja.
Vamos tentar resumir o contexto de forma simples.
Há algum tempo que cientistas apontam que florestas são essenciais ao equilíbrio climático no planeta. Ao mesmo tempo, a expansão da produção de commodities é vista como o principal vetor do desmatamento em florestas tropicais.
Por isso, desde 2010 pelo menos, compradores de commodities vêm assumindo compromissos para desvincular cadeias de commodities e desmatamento. E quem quer vender a esses compradores tem tentado achar mecanismos para atender a essa demanda.
Algumas cadeias se resolveram com certificações. Normalmente cadeias curtas, onde a produção está concentrada em um raio relativamente pequeno no entorno das unidades de processamento e exportação. Papel e celulose é um exemplo disso. Algodão, também.
Para cadeias mais abrangentes e complexas, certificações implicam em alto custo e têm dificuldade em ganhar escala. No fim, só os maiores e melhores produtores conseguem participar dos esquemas de certificação.
Algumas certificações, como RTRS, para soja, e RSPO, para óleo de palma, saíram de mesas redondas, iniciativas multisetoriais que definiram princípios e critérios do que seria um produto sustentável.
No Brasil, o Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável, que virou a Mesa Brasileira de Pecuária Sustentável nasceu com esse propósito, mas logo viu que a certificação não seria uma solução na pecuária e focou em políticas públicas e na disseminação de boas práticas, ainda assim desenvolvendo indicadores para a pecuária sustentável.
Outros mecanismos surgiram com o objetivo de garantir cadeias sustentáveis. Não pela via da certificação, mas do monitoramento da cadeia. Entre estes mecanismos estão a Moratória da Soja e os Acordos da Carne.
A Moratória da Soja nasceu em 2006 de um entendimento entre a sociedade civil e esmagadores de soja para que estes não adquirissem matéria prima de áreas recentemente desmatadas.
Acordos da Carne são um termo que reúne o conjunto de termos de ajuste de conduta celebrados a partir de 2009 entre frigoríficos e o Ministério Publico Federal para garantir a legalidade na originação de gado na Amazonia.
Além desses acordos, os maiores frigoríficos do país foram além em Compromissos Públicos em que se comprometiam a não comprar gado de desmatamento após 2008.
Estamos então no seguinte impasse:
Produtores rurais encaram o Código Florestal como uma obrigação suficientemente pesada, na qual eles arcam com todos os custos para gerar um benefício coletivo que não lhes rende absolutamente nada. E qualquer imposição adicional à legislação é visto simplesmente como um confisco de propriedade.
Prefeitos e gestores públicos em regiões de fronteira enxergam a expansão da agropecuária como uma, quiçá a única, oportunidade de trazer algum tipo de desenvolvimento econômico.
Ao mesmo tempo, mercados dizem claramente que não querem mais produtos de desmatamento, como uma forma de mitigar a crise climática.
De certa forma, esse conflito espelha um pouco o que acontece a nível global, onde nações que mal começam a se desenvolver não querem abrir mão de explorar recursos naturais, incluindo combustíveis fósseis e desmatamento para resolver uma crise climática pela qual não se sentem responsáveis.
Acontece que os tais gestores públicos, sobretudo no Brasil, não costumam raciocinar em prazos que vão além da próxima eleição.
O desmatamento, aliado ao aquecimento que acontece a nível global, é uma ameaça ao futuro da agropecuária brasileira. Não vai ter chuva. Não vai ter água.
E não são só compradores que não querem essa commodities de áreas desmatadas (aliás, é engraçado como grandes defensores do liberalismo de repente decidem que empresas privadas não podem decidir sozinhas com quem querem ou não querem ter relações comerciais).
Bancos não financiarão uma produção com risco elevado de não dar certo. Essa produção não terá seguro, porque, como todo mundo sabe, seguradoras só dão seguro quando têm certeza que a pessoa não precisará de seguro. Elas têm essa mania. Perdas de safra e desastres recentes não nos ensinaram nada?
Desmatamento precisa acabar. Ponto. E antes que apareçam os defensores do sagrado direito de desmatar... amigos, desmatamento ilegal – e que é a maior parte do que acontece – resolve-se com comando e controle.
O controle da ilegalidade e a implementação do Código Florestal nos levaria bastante próximos a cenários de desmatamento zero. Já o controle do desmatamento legal não deve ser imposto e deve resguardar direitos individuais. Mas pode ser tratado com incentivos.
Produtores, indústrias e o poder público deveriam estar debatendo sobre formas de como criar estes incentivos. Por que países em desenvolvimento não poderiam, por exemplo, usar parte dos recursos advindos da exploração de petróleo para financiar soluções baseadas na natureza durante uma transição tanto energética como de sistemas alimentares?
Há sim um debate justo a ser feito sobre o desenvolvimento sustentável em regiões florestais. Sobre novos modelos de desenvolvimento. E acreditem, existem inúmeras possibilidades a serem colocadas na mesa.
Bioeconomia, concessões florestais, mercados de carbono, recuperação de áreas degradadas, restauração produtiva, intensificação de áreas consolidadas. No âmbito da Coalizão Clima, Florestas e Agriculturas, há uma série de propostas nesse sentido que mereceriam a atenção de nossos parlamentares.
As conclusões rasas e apressadas provocadas pela polarização política e por uma visão de curto prazo não vão beneficiar ninguém, nem produtores, nem as regiões que se pretende defender, na contramão de uma realidade que está se impondo e vai se impor impiedosamente.
No lugar de tentar acabar com mecanismos que hoje garantem o acesso do Brasil ao mercado, seria bem mais útil que nossos políticos, federais e estaduais, entendessem, com o setor produtivo e a sociedade, como fazer esses mecanismos simplesmente desnecessários.
Fernando Sampaio é engenheiro agrônomo, diretor de Sustentabilidade na Abiec, e cofacilitador da Coalizão Clima, Florestas e Agricultura.