Em sua longa cadeia produtiva, o algodão envolve muitas mulheres. A maioria delas, nos elos projetados para além das porteiras das fazendas, na indústria de transformação da fibra e na confecção.
No Brasil, estima-se que estes segmentos, que empregam formalmente cerca de 1,3 milhão de pessoas, agreguem em torno de 60% dos postos de trabalho para a mão de obra feminina.
Mas na produção, cada vez maior em nosso país que hoje lidera o suprimento de algodão em todo o mundo, embora a presença das mulheres cresça em ritmo mais acelerado nos últimos anos, ainda há muitos espaços a serem ocupados, sobretudo em áreas de decisão.
De acordo com a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), nas fazendas certificadas pelo programa Algodão Brasileiro Responsável (ABR), na safra 2023/2024, dos 41 mil empregos diretos gerados na produção da fibra, 4.891 dos postos de trabalhos foram preenchidos por mulheres, pouco menos de 10%.
Aquestão é que, se colocarmos a lupa nos números e recortarmos com base na natureza dos cargos levando em conta hierarquia e peso nas decisões tomadas, seja nas fazendas ou em outras frentes da produção, a participação é ainda consideravelmente menor.
E diminuindo a escala até o estado que represento, a Bahia, segundo maior produtor da fibra no Brasil, temos muito trabalho pela frente, na consolidação de uma cotonicultura com mais protagonismo feminino.
Como mulher que galgou a presidência da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa), que está à frente dos negócios da família no Grupo Zanotto e integra muitos foros importantes do setor, como o próprio Women in Cotton, do ICAC, entendo a minha posição como um caso emblemático, e que serve de inspiração para muitas outras mulheres.
O reverso da medalha é que também sou a exceção que confirma a regra - e não deveria ser assim.
Para chegar até aqui, as circunstâncias me ajudaram. Sou a segunda das duas filhas de um casal sem filhos homens, o que deixou meu pai sem opção de fazer sucessores masculinos.
Mas a inevitabilidade dos fatos nem de longe facilitou minha jornada. Quando comecei no negócio da família, convencer seu Dionísio a considerar a minha opinião na decisão final custou alguma energia, e assim foi em cada passo da minha vida profissional, e entre os meus pares, na produção do algodão.
Foram as dificuldades e a resiliência que fui adquirindo em cada atrito que ajudaram a moldar quem me tornei e me fizeram entender que enquanto ainda precisarmos de lutar pela equidade de gêneros, ainda estaremos longe de um ambiente mais equitativo.
No entanto, já há muito a comemorar, e cada vitória conta, inclusive aquelas que se dão no âmbito da individualidade, das empresas menores, e que não ganham destaque nas mídias, mas são importantes para ajudar a tecer novos contornos na história da produção de algodão no país.
Sou a segunda mulher a presidir a Abapa, uma entidade que há bastante tempo tem trabalhado para diminuir este gap entre homens e mulheres na cotonicultura baiana, a começar pelos seus próprios quadros. Uma olhada na composição da nossa diretoria já nos indica que algo está mudando, com a participação intensa de mulheres da segunda geração dos pioneiros, assim como eu, ajudando a conduzir os rumos da nossa atividade na Bahia e no Brasil.
A Abapa tem saído na vanguarda ao promover cursos de qualificação profissional especificas para mulheres, habilitando-as a atuar no agronegócio do algodão e na produção rural como um todo. Inclusive em áreas onde a presença feminina era uma raridade, como a condução e a manutenção de máquinas agrícolas, como tratores, colheitadeira e empilhadeiras, assim como na classificação de algodão.
Desde 2010, quando o Centro de Treinamento e Tecnologia (CT) da Abapa foi construído, mais de três mil mulheres já foram beneficiadas por intermédio de algum de seus cursos, pois, a essência da inclusão e da pluralidade sempre esteve presente em nossa instituição.
Pensando em tornar essa experiência ainda mais assertiva, desde 2021 o CT passou a oferecer turmas exclusivas para o público feminino. A partir de então, já foram mais de 15 turmas, nas quais mais de 160 mulheres tiveram a oportunidade de aprender novas habilidades e competências, de forma personalizada.
Essas iniciativas potencializam o crescimento profissional das mulheres, sobretudo aquelas que estão estabelecidas no entorno das áreas produtivas.
A região Oeste da Bahia é um grande polo de produção de algodão e de alimentos, e por seu caráter moderno e tecnificado, demanda mão de obra qualificada.
A difusão de conhecimento permite a geração de um ativo para quem se beneficia das capacitações, e isso se traduz em empregabilidade e maior possibilidade de renda para as mulheres, ajudando a diminuir as distâncias entre os gêneros, e, em ultima instância, incrementando o desenvolvimento socioeconômico regional.
Igualmente importante e revelador é o trabalho da entidade na promoção e participação de eventos que nos ajudam a repensar a atividade e o papel das mulheres como como agentes de transformação e agregação de valor para o setor.
Esse exercício de reflexão além de apontar novos caminhos, de abrir possibilidades para outros olhares e perspectivas, tem promovido o estabelecimento e o fortalecimento de uma poderosa rede de contatos entre mulheres. E o melhor de tudo, atraído para uma atuação mais intensiva muitas mulheres que ainda estavam hesitantes em mostrar seus talentos e valor. Estas são provas do ditado que diz que “o exemplo arrasta”.
Mas o engajamento só perdura se ele for sustentável e, para isso, tem que ser atrativo, remunerador. Não há como imaginar que homens e mulheres exercendo o mesmo cargo possam ter salários diferentes. Tampouco se, mesmo conseguindo avançar na questão salarial, o reconhecimento do trabalho e a valorização de ideias não sejam uma realidade.
As barreiras culturais e estruturais que limitam participação feminina na produção de algodão devem ser enfrentadas com políticas de incentivo incorporada na governança das empresas e entidades de representação, e, acima de tudo, com a promoção de oportunidades reais de atuação para mulheres.
Aqui na Bahia, vemos muitos exemplos inspiradores de mulheres à frente de fazendas, coordenando equipes e desenvolvendo inovações para o algodão nos mais diversos âmbitos. São gestoras, pesquisadoras, operadoras de máquinas e empreendedoras que desafiam estereótipos e fazem da cotonicultura um espaço cada vez mais diverso e inclusivo.
Eu acredito que a equidade de gênero não seja apenas um caminho para a evolução do setor, mas um dos mais importantes, já que empresas que apostam na diversidade são mais produtivas e inovadoras. Propriedades agrícolas que incluem a visão feminina nas tomadas de decisão são mais eficientes e sustentáveis.
O algodão brasileiro, reconhecido mundialmente pela sua qualidade, só tem a ganhar com mais equilíbrio e inclusão. Quando mais mulheres têm acesso a cargos estratégicos e participam das decisões dentro das fazendas e indústrias, o setor como um todo se fortalece, aumentando a eficiência da cadeia produtiva e consolidando o Brasil como referência global na produção de algodão sustentável e de alta qualidade.
Portanto, a presença das mulheres no setor do algodão não deve ser apenas vista como uma pauta social, mas como uma estratégia de desenvolvimento e competitividade.
Por isso, precisamos continuar investindo em ações concretas. Fortalecer redes de apoio entre mulheres do agro, incentivar a formação técnica e acadêmica, e garantir que as novas gerações de meninas vejam na produção de algodão um caminho profissional promissor. Um dia não precisaremos falar de equidade, pois a questão estará superada.
Outros impasses virão, mas homens e mulheres na produção de algodão, na Bahia, no Brasil e no mundo, enfrentarão os desafiarão juntos.
Talento e qualificação balizarão as escolhas e não mais o gênero. Até lá, precisamos criar as condições para que a realidade que sonhamos para a produção de algodão possa de fato ganhar corpo e prosperar.
Nós até gostaríamos de esquecer, mas não podemos: o algodão, na indústria têxtil, está origem da criação do Dia Internacional da Mulher, criado para relembrar a luta e a violência sofridas por aquelas trabalhadoras que ousaram protestar por seus direitos.
Por elas, por nós e pelas que virão, precisamos trabalhar para que mesmo esta data, no futuro, seja apenas uma lembrança longínqua, de uma batalha vencida.
Alessandra Zanotto Costa é produtora rural e atua como sócia-diretora no Grupo Zanotto. É presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa).