Parece que entramos numa fase em que todas as catástrofes previstas ganham contornos ainda mais severos. Não faltaram avisos da ciência. O mundo queima de um lado e inunda de outro.

O número de eventos climáticos extremos nos últimos cinco anos mais que triplicou em relação aos cinco anos anteriores a esses. Quase tudo estava previsto nos diversos relatórios do IPCC.

Não tinham data marcada, mas sinalizam e a cada dia que acordamos mais confirmações temos das previsões advindas dos modelos climáticos (físicos e matemáticos) apresentados.

No período da mitigação climática, logo ali em Paris 2015, previa-se como necessário algo como US$ 100 bilhões/ano para jogar o jogo climático, mais ou menos.

Agora que perdemos essa oportunidade e entramos na era da adaptação, os números pipocam nos incríveis de US$ 2 trilhões a US$ 4 trilhões/ano.

A degradação foi muito rápida. O montante parece muito, mas na relação com o PIB mundial, pouquíssimo. Mas quem se dispõe a colaborar nessa “vaquinha”?

No Brasil não é diferente e, para quem lê esses relatórios, dá uma sensação de ansiedade. Sabemos que estamos numa faixa do planeta onde esses extremos climáticos devem se agravar. Então, necessitamos, numa velocidade maior, trazer à mesa os famosos “diálogos impossíveis”.

Nunca vimos nosso país tão seco... Nunca inundações do porte que vimos no RS... Nunca tivemos a quantidade de focos de incêndios como as desse ano (mais que o dobro do recorde anterior). Enfim, poderíamos listar aqui uma série de infortúnios que nos ameaçam seriamente.

Seremos o líder da energia limpa sem água? Um dia, líder do Agro sem água?

Acompanhamos alarmados o aumento da temperatura média do solo de forma constante em áreas do Cerrado que afetam diretamente a produtividade.

Nesse mesmo bioma, também vemos uma redução substancial do estoque de água disponível em centenas de municípios, tudo somado, mesmo com as novas tecnologias aplicadas a sementes e tratos culturais, as perdas estão sendo enormes.

Digo tudo isso para entrar num tema espinhoso, que se tornará ainda mais espinhoso no decorrer do tempo, o desmatamento zero.

Vale destacar, em primeiro lugar, que não existe o tal “desmatamento zero” em lugar algum do planeta, pois esse sempre ocorrerá nas obras de infraestrutura, na mineração e na ampliação de área agrícola de países muito pobres, principalmente na África.

Até mesmo as regras do HCSA – High Carbon Stock Approach, iniciativa que teve entre os seus fundadores a ONG Greenpeace, não proíbem o desmatamento, mas criam regras baseadas em ciências para que ele ocorra. À luz da ciência atual, conseguimos mitigar e compensar esse nível controlado de perda vegetal.

Desmatamento ilegal

É impressionante que, em 2024, ainda discutamos desmatamento ilegal. Isso é uma vergonha ao Brasil e expõe o pior do sistema público nacional. Um executivo (federal e estadual) que não consegue fiscalizar e coibir, um judiciário que não consegue punir – e na impunidade reina o caos –, um legislativo que além de aprovar leis que enfraquecem o poder agroambiental do país também não aprova aquelas que poderiam nos colocar numa patamar de primeiro mundo, vide a lei de carbono que há anos navega pelos corredores do congresso nacional.

Tudo isso piora diante de uma sociedade passiva, que assiste atônita o teatro da desordem.

A conta já está vindo no balanço das empresas e coloca o Brasil no patamar dos países “hard to abate”, termo em inglês que caracteriza setores ou países em que se dificulta a redução de gases de efeito estufa.

Não há outras palavras, o desmatamento ilegal é uma vergonha a nossa nação.

O processo deletério do desmatamento desenfreado na Amazonia e do Cerrado nos últimos 30 anos se mostra em estudo ainda em andamento do IPAM (Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia), demonstrando que 10% dos municípios (1090 no total) do Cerrado brasileiro tiveram mais de 70% de redução na superfície de água disponível. Em mais de 50% desses, a perda superou os 25%.

A malha hídrica (rios) encolheu e reduziu suas vazões no período objeto desse estudo entre 1985 a 2023. Na toada atual, isso tende a se acentuar e os reflexos serão ainda piores.

Desmatamento legal

Aqui o tema precisa de gente inteligente sentada nessa mesa de “assuntos impossíveis”. Precisamos enfrentar esse tema de frente.

À luz da ciência e tecnologia disponível, sabedores da importância florestal na formação de chuva e manutenção de água que abastece as cidades e irriga o Agro nacional (nem vou entrar na importante questão da biodiversidade), não cabe mais a perda de cobertura vegetal.

Mas, vejam com atenção, não é um questão que se discuta propondo uma data de encerramento, de corte como consta no último PPCDAM-Plano de Ação e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal.

O desmatamento no Brasil não acabará em 2030 por decreto, como se preconiza nesse plano e como vem sendo propagado por altas autoridades de Brasilia. Nem mesmo o ilegal. Infelizmente, o tempo é curto e a dificuldade, grande.

Como discutir o desmatamento legal de forma séria se não conseguimos eliminar o ilegal? Pune-se a propriedade que caminha dentro da lei atual em detrimento da bandidagem?

No contexto das novas economias verdes, o estoque florestal ganha relevância, como mostram os milhões de hectares plantados por Índia e China nos últimos 10 anos, ritmo também observado em vários outros países enquanto se reduz as emissões de setores onde o custo é mais alto, como energia e transporte.

Mas, a conversa é difícil, como foram difíceis todas as grandes mudanças no mundo moderno.

Lembrem que a escravidão no mundo era legal, o apartheid na África do Sul era legal. Então, nem sempre o legal fala com a transformação pretendida pela sociedade contemporânea ou pelas condições exigidas, nesse caso pelas mudanças climáticas.

Como assim comparar terríveis situações sociais com uma ambiental?

Sim, ao fim e ao cabo são todas sociais, pois o efeitos das mudanças climáticas esbarram e afetam mais fortemente as populações mais pobres e desassistidas, aprofundam a miséria. No final, todos perderam.

"Podemos até estar amparados com a lei, mas precisamos discutir o que estamos abrindo mão no futuro"

O maior caos social na Amazonia está justamente nos munícipios líderes do desmatamento ilegal no Brasil, como mostra os dados do IPS-Indice de Progresso social, que já cobre com relevantes dados todos os municípios brasileiros.

Podemos até estar amparados com a lei, mas precisamos discutir o que estamos abrindo mão no futuro.

Dito isso, precisamos dialogar sobre como fazer essa revolução evolutiva e transformar a forma de como tratamos esse tema.

Precisamos trazer à mesa ferramentas financeiras, mecanismos econômicos, compensações a propriedades privadas (pequenas, médias e grandes), estruturar o mercado nacional de carbono, desenvolver ferramental que incentive o PSA (Pagamento por Serviços Ambientais) e o supernovo diálogo sobre créditos de biodiversidade. E, claro, acelerar sobremaneira a implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e encarar a regularização fundiária como prioridade da nação.

Com isso em mãos, podemos desenhar uma estratégia de longo prazo que conceda credibilidade, estabilidade e sucesso ao processo.

Sem isso, seria apenas mais uma promessa, que, quando não cumprida (e não será), confere tremenda perda reputacional ao País e, consequentemente, a todos os seus setores econômicos. Já descumprimos promessas demais.

Estamos há 14 meses da COP30 no Brasil e construindo o Plano Clima que será a nova NDC (sigla em inglês para Contribuição Nacionalmente Determinada) do Brasil.

Todos os países deverão apresentar suas próprias NDCs até fevereiro de 2025. Essas nada mais são que a estratégia de desenvolvimento de cada país para a década de 2025 a 2035.

No Brasil, está sendo coordenada pela Secretaria do Clima do MMAMC, que tem promovido centenas de encontros com todos os setores da sociedade.

Portanto, é a hora de mostramos, numa conversa de adultos, que podemos construir uma agenda ganha-ganha para o País.

Precisamos participar ativamente desse processo. Se negociarmos bem o passo a passo de cada ação transformadora e adaptativa, essa agenda será vencedora. Mas se for impositiva, temo pelo seu sucesso.

É hora de os verdadeiros brasileiros mostrarem seu compromisso com esse País. O assunto é espinhoso, mas muito importante e necessário nesse momento de construção daquilo que esperamos ser como país nas próximas décadas.

Marcello Brito é coordenador do Centro Global Agroambiental e Academia do Agro na Fundação Dom Cabral (FDC).