O livro "Perdido em Marte", escrito por Andy Weir, foi lançado em 2011. Nas livrarias, a história do astronauta esquecido no planeta vermelho que planta batatas entrou na seção de ficção científica.
Na Flórida, mais precisamente na NASA, um time de cientistas se dedica desde os anos 1990 a fazer com que aquela história – e outras do gênero – deixe de ser fictícia e passe a integrar prateleiras mais técnicas, além de encontrar aplicações no mundo real.
Um dos pesquisadores mais renomados quando o assunto é agricultura espacial é Gary Stutte, especialista em horticultura, biologia espacial e fisiologia vegetal.
Filho de pai cientista e professor de agronomia para cultivos de soja e algodão na Universidade de Arkansas, ele começou sua carreira nos anos 1980 como professor assistente na Universidade de Maryland, onde atuava com frutas e vegetais. Posteriormente, passou a atuar com a fisiologia das plantas após a colheita, ajudando a melhorar o shelf life de alguns alimentos.
Depois de mais alguns anos estudando fisiologia vegetal em árvores frutíferas, teve a oportunidade, no início dos anos 1990, de ir ao Centro Espacial Kennedy, da NASA, e conhecer o projeto BreadBoard.
“A ideia inicial era demonstrar a viabilidade de manter uma pessoa viva por um ano usando plantas com sistemas biológicos de suporte à vida”, conta Stutte ao AgFeed.
O que eram para ser alguns meses por lá se transformaram em 20 anos na agência espacial. Nesse período, conta, publicou mais de 150 artigos científicos sobre os efeitos das condições de crescimento em cultivos em ambientes fechados, produção de frutas, biologia espacial, sistemas de iluminação LED e sistemas biológicos de suporte à vida para missões à Lua e a Marte.
Alguns de seus estudos viabilizaram novas técnicas de produção. Suas pesquisas que envolvem a iluminação, por exemplo, foram grandes aliadas na criação da agricultura indoor.
Atualmente, Stutte dirige a sua própria empresa, a SyNRGE, que faz parte do ecossistema da NASA, e, além de ajudar no desenvolvimento da agricultura para alimentar pessoas no espaço, também atua numa via de mão dupla, utilizando os aprendizados no programa espacial para melhorar cultivos em terra firme.
Stutte foi também consultor científico para o filme Perdido em Marte, estrelado por Matt Damon e lançado em 2015, com inspiração no livro de 2011. “Os detalhes técnicos estavam errados, mas a ideia principal estava correta”, brinca.
O cientista conversou com o AgFeed nesta segunda-feira, 22 de abril, durante um evento promovido pela International School no Cubo, instituição ligada ao Itaú focada em inovação, localizada em São Paulo.
Durante a conversa, citou algumas tendências para esse segmento, comentou sobre avanços tecnológicos e quais desafios já foram superados quando o assunto é cultivo de alimentos fora da Terra. Confira:
Quando falamos sobre o cultivo de plantas fora da Terra, quais desafios já foram superados e o que ainda falta superar? São as sementes, os fertilizantes, o manejo?
São muitos desafios. No começo, a grande questão era que a planta precisava saber, na ausência de gravidade, qual lado era o de cima. Senão, teríamos raízes apontando para cima e brotos descendo para o solo. Para solucionar esse tipo de problema começamos a usar a luz e a água e também a forma como plantamos as sementes.
Outro desafio que tínhamos nós chamamos de correntes de convecção: o CO2 é mais pesado que o oxigênio e, com isso, a gravidade da Terra faz uma mistura que não acontece na microgravidade. Assim há muito CO2.
Qual o efeito disso para a planta?
Nesse cenário, as plantas ficam sem combustível vegetal e não crescem. O desafio se deu em fazer essa mixagem, para ajudar a controlar a umidade.
E hoje, em que estágio a ciência chegou?
Agora, com o passar dos anos, conseguimos cultivar plantas durante todo o seu ciclo de vida. Elas germinarão e terão vegetação. Elas florescerão e frutificarão, mas ainda há muitos desafios na consistência.
Quais são?
A rega é sempre um problema para otimizar as condições. Nós ainda não sabemos os efeitos a longo prazo sobre a radiação nas sementes. Será que ainda serão viáveis quando recuperarmos nutrientes das plantas que não comemos? Isso é algo que nos indagamos.
Como novas tecnologias, como a Inteligência Artificial (IA), podem ajudar nas pesquisas?
A IA está coletando muitas informações e agrupando-as muito rapidamente. Podemos aproveitar essa rapidez e começar a otimizar avaliações, com chance até de automação para detecção precoce de estresse, controle ativo e gerenciamento do ambiente para otimizar CO2, temperatura da água e umidade relativa.
"Acredito que seja possível 'desacelerar cultivos' e controlar o crescimento, atendendo às demandas da tripulação"
Acredito que seja possível “desacelerar cultivos” e controlar o crescimento, atendendo às demandas da tripulação. Portanto, vejo muito potencial em controle de ambiente inteligentes. O poder da computação possibilitou sensores melhores e menores.
Também pode auxiliar na edição de genes?
Sim. A compreensão da genética e a ativação e desativação direcionada de genes para aumentar a nutrição ou resistência ao estresse também têm um potencial enorme para otimizar nossa capacidade de cultivar.
Em última análise, estamos enviando (ao espaço) exploradores e não agricultores. Então, precisamos ter a tecnologia e a informação para apoiá-los no seu trabalho. Eles são muito inteligentes e brilhantes, mas seu trabalho principal não é a produção de alimentos.
Como a agricultura espacial pode ajudar nossos agricultores na Terra a desenvolver melhores métodos?
Foi por esse motivo que comecei minha empresa e posso te dar alguns exemplos concretos dessa relação. Começamos a cultivar plantas no espaço e os sistemas de iluminação usados na época eram convencionais. Eram luzes fluorescentes, que podem quebrar e têm uma vida útil curta. Além disso, há mercúrio nessas formulações, o que as tornam tóxicas, o que é maléfico para a planta e para quem faz o manejo.
"Estamos enviando (ao espaço) exploradores, não agricultores. Eles são muito inteligentes e brilhantes, mas seu trabalho principal não é a produção de alimentos"
Precisávamos de um substituto e começamos a procurar novas tecnologias, que eram iluminação de estado sólido ou LEDs, que têm longa duração. Vimos que era possível atingir os comprimentos de onda desejados e foi ali que esse tipo de tecnologia começou a se desenvolver. Isso permitiu o desenvolvimento de formas totalmente novas de cultivo de plantas como fazendas verticais e agricultura indoor, algo que não era possível há 15 anos atrás e agora está explodindo em todo mundo.
Algum outro exemplo?
Outros sistemas que usamos estão relacionados ao uso sustentável e a reciclagem da água. Isso levou a uma utilização de sensores muito mais eficientes e a sistemas de irrigação de precisão, que visam plantas de forma individual.
Nosso trabalho na SyNRGE tem levado micróbios benéficos para a fixação de nitrogênio, que tem a intenção de melhorar o movimento de nutrientes do solo para as plantas. Levamos esses organismos ao espaço e eliminamos algumas das suas limitações. Melhorando o desempenho no espaço, trazemos para a Terra e vemos se eles continuam estáveis. Transformamos esses microorganismos de bons a melhores e, assim, usamos a tecnologia para melhorar a produtividade e os solos em todo o mundo.
A SyNRGE funciona como uma consultoria?
Criei a empresa há sete anos com a ideia de levar a experiência no cultivo de plantas no espaço para uma produção sustentável e consistente e, desta forma, ajudar a resolver alguns dos problemas da agricultura aqui na Terra. Primordialmente, a companhia é uma consultoria e atuamos junto com empresas do segmento da indústria agrícola, principalmente de estufas de agricultura interna com culturas de alto valor agregado.
Também realizamos experimentos na Estação Espacial Internacional. A empresa tem esse nome (que significa sinergia, em inglês), que é resultado dessa simbiose entre microorganismos benéficos, ou bioprotetores, e as plantas.
Quais as linhas de trabalho da empresa?
Nós fazemos perguntas como: podemos usar a microgravidade para fazer os “microorganismos do bem” ainda mais eficientes? Com isso, eles podem combater algum estresse causado no meio ambiente? Quando eles voltam à Terra, podemos melhorar a absorção de nutrientes pelas plantas? Em resumo, estamos procurando soluções biológicas para esses problemas de produção, ao mesmo tempo em que vislumbramos viagens à Lua, Marte e além.
Quais são as tendências para agricultura espacial nos próximos anos?
As pesquisas se concentram em plantas de alto valor nutricional, ou seja, nos benefícios para a saúde que os principais alimentos que usamos como “combustível das pessoas”. Por isso sempre cultivamos batatas, arroz, mandioca e batata doce, por exemplo. O desafio está em cultivar a quantidade de calorias necessárias para cada pessoa nesse curto prazo.
"Começaremos a criar 'fazendas espaciais' à medida que nos tornamos mais eficientes para produzir"
As plantas de que precisamos são ricas no que chamamos de fitonutrientes, que são produtos químicos benéficos. Posso citar alfaces vermelhas, que possuem queratinas que protegem dos danos da radiação e ajudam a manter e sustentar a saúde. Vejo que haverá um crescimento mais intenso na seleção dos tipos de plantas que podemos produzir em menos tempo. Cultivaremos, num segundo momento, plantas frutíferas e saudáveis quando começarmos a colonizar e viver em Marte.
É possível fazer isso em escala?
Começaremos a criar “fazendas espaciais” à medida que nos tornamos mais eficientes para produzir, mas isso demanda um purificador de água para limpar a atmosfera em que alguma cultura é produzida. Portanto, estamos concentrando nossos recursos de forma a ter um cultivo e alimentos muito mais sustentável e consistentes no longo prazo.
Tudo isso continua a ajudar o ecossistema agrícola…
Na tecnologia atual, levamos cerca de nove meses para chegar em Marte. São nove para ir e nove para voltar em termos de combustível para a viagem. No fim das contas, são missões de três anos, considerando o tempo de permanência no planeta, o que demanda uma quantidade enorme de recursos com os astronautas para produzir os alimentos. Então, teremos que fazer um esquema auto-sustentável.
Nesse novo ambiente, aprendemos novas formas de cultivo e novas adaptações. Desenvolvendo esse ecossistema, podemos ajudar o agronegócio na Terra. Faremos parte da economia marciana e, nela, as plantas não servem apenas para alimentação, mas também para regenerar a atmosfera, retirando nutrientes do solo e os reciclando. Podemos pensar em cultivos em luas marcianas ou em outras condições espaciais. Esses são os nossos sistemas de suporte à vida. As plantas são verdadeiramente uma metáfora para staying alive (permanecer vivo).