Quem trabalha com o agro sabe o significado da palavra instabilidade: é surpresa no câmbio, no clima, nas bolsas internacionais de commodities e por aí vai. Mas, para quase tudo, as empresas do setor se acostumaram a fazer o chamado hedge, proteção de preço, com operações planejadas que deixam “travada” uma rentabilidade mínima que se pretende obter.
A única exceção até hoje é o frete. Não foram poucas as companhias do agro que viram o lucro desaparecer em safras recentes ao se deparar com a explosão nos preços do transporte rodoviário, que é o principal modal para levar a produção agropecuária até os portos e trazer os insumos para as fazendas.
Pensando nisso, uma startup brasileira que vem recebendo investimentos do setor financeiro e até do Google, está prestes a testar aquilo que por enquanto está no campo da imaginação: fazer operações futuras de fretes agrícolas, como ferramenta de hedge.
O projeto faz parte da plataforma digital goFlux, criada em 2018 por ex-executivos de multinacionais dos setores de logística, agronegócio e mineração. A dor que sentiam na pele – lidar todos os dias com a imprevisibilidade nos preços e na contratação dos fretes – deu origem às soluções que a empresa desenvolveu e passou a oferecer ao mercado.
O negócio principal é promover o encontro entre empresas que contratam fretes de produtos agrícolas e insumos agropecuários com as principais transportadoras.
“Sabíamos que era preciso digitalizar o processo de contratação de fretes, afinal ele tem grande impacto no custo dos produtos agrícolas e necessita de mais transparência e compliance", explica o sócio fundador e CEO da goFlux, Rodrigo Gonçalves.
A empresa conta atualmente com 3 mil transportadoras homologadas e cadastradas. No lado contratante do frete, atende 13 das 20 maiores exportadoras de soja do Brasil, além das principais companhias de setores como fertilizantes, açúcar e etanol.
A goFlux é, segundo o executivo, líder nas operações digitais de logística do agronegócio. Desde sua criação já movimentou mais de 100 milhões de toneladas de carga, com 90% das transações relacionadas à cadeia do agronegócio.
Em 2022, a plataforma transacionou R$ 7 bilhões, enquanto o mercado total de fretes rodoviários no Brasil, incluindo todos os segmentos da economia, é estimado em R$ 300 bilhões, segundo Gonçalves.
Iniciativas semelhantes foram lançadas por grupos de forma isolada e também com a participação de tradings do agronegócio, como o projeto Vector, que inclui a Bunge e outras empresas. Mas, de acordo com Gonçalves, as operações não são concorrentes porque focam no contato com o motorista autônomo e não com as transportadoras, como é o caso da goFlux.
"Os modelos mais comuns são baseados na uberização dos caminhões, mas pelos 20 anos que temos de experiência no setor de logística, ainda acreditamos que manter o foco nas transportadoras traz mais segurança", afirmou.
Fretes futuros
A primeira fase do projeto ganhou força não apenas por conectar contratantes e prestadores do serviço, mas também pelo uso de dados e inteligência artificial. A partir do histórico de dados dos preços e transações realizadas desde 2018, a empresa desenvolveu em conjunto com o Google um algoritmo para indicar o frete futuro.
"Até hoje essa precificação futura sempre foi feita de forma muito empírica, considerando inflação, por exemplo. Mas os fretes têm uma dinâmica própria, muitas vezes se descolam até da direção dos preços do diesel, por isso era necessário ter uma previsão mais sofisticada, que cruzasse diferentes fatores”, explica o executivo.
Atualmente, a plataforma fornece indicadores de preços de frete para 3, 6 e 12 meses e, segundo a empresa, tem alcançado assertividade de 90%, especialmente para os prazos mais curtos.
Nesta trajetória, a empresa já entrou em processos de aceleração formal não apenas do Google com machine learning mas também da Endeavor e da SAP – desta última, passou a integrar as soluções nativas, mas ainda atuando de forma independente. Ao todo já recebeu R$ 30 milhões em investimentos, vindos da SP Ventures, da atual Rendimento Ventures e da Bluestone Capital.
Até o fim de março a goFlux espera concluir uma nova rodada de negócios e receber aporte de mais dois investidores, um deles estrangeiro. O valuation mais recente da empresa indica US$ 70 milhões, mas o ambicioso plano de negócios projeta chegar em 2028 valendo US$ 800 milhões.
O braço financeiro da operação é um dos suportes para o crescimento que está sendo planejado. A goFlux já oferece crédito de antecipação de recebíveis às transportadoras. Começou por meio de parcerias com agentes financeiros e este ano está lançando um FDIC próprio.
"Queremos chegar a R$ 500 milhões financiados aos clientes este ano e isso é possível porque no mercado de fretes os prazos são curtos, normalmente é necessário apenas antecipar em um mês os recebíveis", disse Gonçalves.
A partir disso, no segundo semestre de 2023 a empresa começa a testar na plataforma um modelo de derivativo de frete, para permitir operações de hedge. Os indicadores diários de preços – baseados somente em operações reais transacionadas via plataforma e não apenas em ofertas de compra e venda indicadas pelas partes – fazem parte do argumento da goFlux sobre a confiabilidade de seus dados.
A expectativa é que futuramente haja parceiros interessados como as próprias bolsas brasileiras, mas por ora, os executivos entendem que é possível dar garantias às partes que vão fazer a transação. "Vamos testar na entressafra da soja, possivelmente com o milho, a partir de agosto”, revela.
Se der certo, especialistas acreditam que a ferramenta pode ajudar a reduzir riscos financeiros das empresas do agronegócio. Até o atraso nas vendas antecipadas da safra 2022/23, que ficaram muito abaixo da média histórica, segundo especialistas, vem sendo relacionado ao risco do frete.
“Empresas fecharam contratos com produtores rurais no passado esperando que o frete estaria num patamar X, mas depois tiveram que pagar quase 3x mais do que o previsto, realizando prejuízos. Agora, elas estão preferindo estimar fretes sempre em patamares elevados e isso acaba ficando pouco atrativo ao produtor, que opta por segurar os grãos e não vender”, disse ao AgFeed um conselheiro de grandes empresas do agro que prefere não ser citado.
Ferramenta ESG
Outro serviço que vem sendo fornecido pela goFlux é uma calculadora da pegada de carbono do frete rodoviário. Os protocolos internacionais foram adaptados à realidade brasileira, para que considerassem também aspectos específicos do Brasil como má condição das estradas, uso de biocombustível misturado ao diesel, frota de idade avançada e velocidade média menor.
Desta forma, obtiveram o certificado internacional Verra e esperam até 2025 contribuir para que 50% do volume de cargas transacionado já tenha impacto zero de carbono. Operações com foco nesta mensuração e posterior redução das emissões de gases causadores de efeito estufa já vêm sendo realizadas com alguns dos principais clientes da empresa.