“Moça, por favor, qual é mesmo a autonomia do veículo de vocês?”. A pergunta é de um participante da Fenasucro & Agrocana a uma das promotoras do estande da Lecar. Ao celular, ele encontra resposta rápida da jovem que entregava folderes para repassar ao seu interlocutor. “Autonomia de mil quilômetros”.
O veículo em questão é a picape Campo, cujo mock-up (protótipo de demonstração, sem interior e motor) em um vibrante tom de azul foi apresentado esta semana na principal feira da indústria sucroenergética do mundo, em Sertãozinho (SP).
Com um potencial cliente entre o urbano e o rural e o etanol entre os combustíveis para movimentar a tração elétrica, a Campo deverá ser o segundo veículo da Lecar, montadora-sonho do empresário Flávio Figueiredo Assis. O primeiro carro será o 459, um cupê que deve marcar a estreia da marca, daqui um ano.
Assim como a promotora, Assis tinha respostas para quase todas as perguntas da legião de curiosos que passou pelo espaço da sua empresa e também para as da reportagem do AgFeed.
Em uma hora de conversa, interrompida por autoridades, curiosos e realizadores da feira, uma informação exclusiva em meio às outras conhecidas até pela moça do estande e divulgadas à exaustão em eventos e entrevistas feitos no último ano por representantes da Lecar.
Nos últimos meses, segundo Assis, a futura montadora brasileira desenha, junto a uma instituição financeira, um fundo de investimento com oferta pública de até US$ 1 bilhão. Os recursos devem ser usados para investimento na expansão de um projeto que, literalmente, por enquanto nada mais é do que um projeto – ou seja, ainda está na primeira fase.
“Será um fundo de mercado para investimento nessas fábricas novas. E também para financiar a expansão nossa para exportação”, disse Assis. Segundo ele, esse fundo deveria ser finalizado ainda esta semana e seria apresentado até o próximo mês.
E quem vai operar esse fundo? “Eu acho que é o (banco) ABC. Não sei de tantos detalhes assim. Eu estou fazendo carro”. Foi uma das perguntas que Assis para as quais não cravou, ou não quis cravar, uma resposta.
Os cerca de R$ 5,4 bilhões (no câmbio atual) chegariam para um caixa independente do investimento de R$ 840 milhões na fábrica que a montadora promete inaugurar, em agosto de 2026, em Sooretama (ES). A pedra fundamental deverá ser lançada até o mês que vem.
Os milhões para o início da produção e conclusão da primeira fase da empreitada virão de recursos próprios do empresário, de financiamento bancário e dos investidores que apostaram no projeto de Assis.
O empresário não peca pela modéstia. Ele se autodenomina como o “Elon Musk brasileiro” em seu perfil na rede social LinkedIn, uma referência ao bilionário dono da montadora Tesla, modelo para a Lecar.
Segundo o empreendedor, mais 5 mil pessoas já desembolsaram uma entrada para reservar um veículo da futura montadora. Inicialmente, o sinal foi de R$ 1.593, o correspondente a 1% dos R$ 159.300,00 do preço de venda das primeiras unidades do cupê 459 e da picape Campo. O restante deverá ser desembolsado, de acordo com ele, um mês antes da entrega.
Atualmente, o sinal está em R$ 9 mil, valor que será reajustado progressivamente com a proximidade das primeiras entregas, também previstas para agosto de 2026.
Os dois modelos terão protótipos funcionais no Salão do Automóvel de São Paulo, entre 22 e 30 de novembro, na capital paulista. Lá, o sinal de entrada para a compra programada estará em R$ 30 mil.
A motorização dos veículos é inédita. Ao contrário dos híbridos convencionais, com motores elétricos e à combustão independentes, o projeto da Lecar prevê que um motor à combustão flex movido a etanol e/ou gasolina movimente um dínamo que carregará o motor elétrico responsável pela tração.
Toda essa tecnologia embarcada, bem como outros componentes, está disponível no Brasil. Isso fará com que os veículos, quando produzidos, tenham um índice de nacionalização de 85%, segundo Assis.
O motor HR-10, um 1.0 turbo flex, virá da Horse, empresa da Renault e da Geely, e já equipa o compacto Kardian da montadora francesa. O gerador elétrico é da brasileira Weg e o Grupo Randon fornecerá suspensão (Suspensys), freios (Fras-le) e amortecedores (Nakata). De acordo com Assis, rodas virão da Maxion Wheels, pneus da Pirelli e os couros dos bancos, por exemplo, serão da JBS.
A capacidade de produção inicial da fábrica capixaba será de 10 mil unidades por mês e Assis garante aos céticos que a indústria e os primeiros veículos estarão prontos daqui um ano.
“Eu posso te garantir. A fábrica estará pronta e, nem que seja um carro, a gente produzirá em agosto de 2026”.
Já os bilhões de reais, se captados pelo fundo, vão para o projeto de expansão da companhia. Assis já informou à prefeitura de Jacareí (SP) ter interesse na planta da Caoa Chery fechada há três anos e em processo de desapropriação pelo governo local, dono do terreno. Outro alvo do empresário é a unidade da Toyota em Indaiatuba (SP), que está sendo desativada e com a produção transferida para Sorocaba (SP).
Na mesma linha, Assis foi ignorado pelo governo baiano ao tentar, no passado, assumir a fábrica fechada pela Ford em Camaçari (BA). A unidade foi adquirida pela chinesa BYD para a nacionalização dos seus veículos elétricos e híbridos.
“Da aposentadoria ao carro”
Antes de se autodenominar o Elon Musk brasileiro, Flávio Figueiredo Assis estava “aposentado”. Após trabalhar em banco e escritório de contabilidade por 25 anos, em 2012 fundou a Le Card.
Nas mãos dele, a empresa se tornou uma das maiores fornecedoras de cartão alimentação do país, atendia 800 prefeituras e faturava R$ 1 bilhão por ano até ser vendida, no final de 2022.
“Vendi e dormi aposentado. Aí, no outro dia, continuei com vontade de fazer o carro”, resumiu. Assis tirou a letra “d” do final, juntou as duas palavras da antiga empresa e criou a Lecar.
Segundo ele, a vontade de empreender em algo inédito ganhou força com o fechamento das fábricas da Ford na Bahia e da Mercedes-Benz em São Paulo. “Falei, cara, o que está acontecendo com esse setor? O Brasil vai ser um mercado importador? Que caminho é esse?”.
A ideia inicial era fazer um veículo 100% elétrico como os da Tesla do Elon Musk original. Aposentado, com tempo e dinheiro, Assis e sua equipe desmontaram um Tesla e constataram que o projeto era muito simples. Mas os perrengues e os questionamentos sobre os veículos 100% elétricos, resumidos em um meme, o fizeram mudar de ideia.
“A gente viu que não estava dando certo mundo afora e, em abril de 2023, vi um meme de um Tesla rebocando um gerador de energia. Eu falei ‘olha que ideia maravilhosa, vamos pegar um gerador e colocar dentro do carro’”, contou.
O projeto avançou, testes de bancada foram feitos e o Tesla foi carregado a partir da energia gerada por um motor que consumia meio litro de gasolina por hora. Assis buscou engenheiros nas próprias fábricas fechadas e avançou com o projeto.
“Eu vi também que tinham empresas no Brasil fornecedoras e pensei: ‘se eu juntar essa turma todinha, eu consigo fazer um carro’”, lembrou.
Com tecnologia e fornecedores resolvidos, faltam agora a fábrica e os veículos para que o sonho do brasileiro se torne realidade e ganhe o mundo.
O exemplo de Gurgel
“A gente tem como levar carro híbrido flex a etanol para o mundo. Eu faço carro, vocês fazem etanol, e vamos exportar. O Brasil vai ser uma plataforma de exportação de carros verdes para o mundo”.
Esse foi o mantra do Elon Musk brasileiro para empresários, curiosos e visitantes de mais de 60 países que passaram pela Fenasucro esta semana no município do interior paulista.
Após uma série de interrupções, para atender curiosos, a curiosidade do próprio repórter - que cresceu na época em que o mais concreto sonho de uma montadora brasileira foi da realidade à falência, em 1993 - pautou a última pergunta.
O que faltou para a Gurgel ter sucesso e que não faltará à Lecar?
Criada em 1969 pelo empresário João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, a montadora que levou seu sobrenome foi a única 100% brasileira e sonhava em popularizar um modelo econômico e robusto, o BR800, construído para as condições brasileiras. A Gurgel chegou até a projetar e apresentar, há mais de 50 anos, o Itaipu, um veículo elétrico. Mas não deu certo.
Assis tinha resposta para a derradeira questão: “Parcerias fortes, ousadia de vender antes de existir o produto e a adesão do brasileiro. Acho que teve uma falta de apoio para a Gurgel. A gente pede para o brasileiro apoiar comprando nossos produtos, entrando na fila de reserva”, afirmou.
“E, com o fundo multimercado, a gente vai captar recursos do mundo inteiro para realizar um grande projeto, não só de mobilidade, mas de levar carro brasileiro para o mundo”, encerrou.
Resumo
- ecar promete lançar picape híbrida e cupê nacional em 2026, com tecnologia inovadora que utiliza motor flex (etanol/gasolina) para alimentar motor elétrico
- CEO Flávio Figueiredo Assis busca levantar fundo de US$ 1 bilhão para financiar expansão da montadora e abertura de fábrica em Sooretama (ES)
- Segundo Assis, mais de 5 mil veículos, que terão até 85% de componentes nacionais, já foram reservados com entrada paga