Na contagem regressiva para o início das restrições anti-desmatamento por parte da União Europeia, o tema da rastreabilidade está cada vez mais quente na pecuária brasileira.
De um lado, frigoríficos precisam atingir suas metas de descarbonização e para isso é necessário saber a origem exata dos bovinos abatidos. De outro, pecuaristas admitem que a rastreabilidade é necessária, mas não aceitam a ideia de que o processo seja obrigatório.
A difícil missão de encontrar um consenso e definir o que seria o “sistema nacional de rastreabilidade bovina” está nas mãos de um Grupo de Trabalho (GT), liderado pelo Ministério da Agricultura, envolvendo os diferentes elos da cadeia.
O AgFeed conversou sobre o tema com Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade da Marfrig e da BRF, gigantes do setor de carnes no Brasil, que tem meta de rastrear 100% dos fornecedores diretos e indiretos até 2025.
“Eu acredito só em rastreabilidade mandatória. Todos os bons exemplos que tem no mundo partiram de políticas públicas mandatórias”, afirmou o executivo.
Pianez citou como exemplos a Austrália, o Uruguai e também alguns países europeus em que os sistemas de rastreabilidade nasceram de forma obrigatória.
Ele ponderou, no entanto, que “o princípio de implementação não pode ser pela exclusão, tem que ser pela inclusão”. Na prática, defende que o sistema seja implantado por fases, para evitar que produtores sejam excluídos do processo, antes que tenham condições para se adaptar, com “viabilidade econômica”.
“Temos que prover, entre os vários elos da cadeia, os meios pelos quais essa tecnologia possa chegar até esse produtor e viabilize a implantação disso. Não é alguma coisa que tem que ficar para ele”, explicou.
O executivo não detalhou se as empresas, como a Marfrig, estariam dispostas a pagar mais pelo produto rastreado, uma reivindicação comum por parte dos produtores.
Segundo Pianez, o setor defende “uma política pública” neste sentido e outras iniciativas que ajudem o produtor a ter acesso à tecnologia sem comprometer “a capacidade de rentabilizar o negócio dele”.
Em artigo recente da coluna Desafios da Pecuária, do AgFeed, o consultor Maurício Nogueira, lembrou que o desafio da rastreabilidade é enorme por diversos fatores. Entre eles, por exemplo, está o fato de que cada criador se relaciona com outros 110 fornecedores indiretos na cadeia pecuária.
Perguntado sobre este argumento, o diretor da Marfrig disse que vê isso “como um desafio, mas não como inviabilizador”.
“Para cada caminho que percorre um animal, eu gero uma guia de trânsito animal. Se eu vinculo a essa guia de trânsito animal o número do CAR, eu consigo ter os perímetros de fazenda ou as fazendas em todo o percurso”, afirma.
Segundo ele, por meio de georreferenciamento e geolocalização, é possível “pegar daquele lote de animais que se refere a uma GTA, todos os territórios pelos quais ele passou. Mesmo que esse animal passe por 100 diferentes fazendas”.
A identificação, neste modelo, seria feita por brinco, chip ou por localização via satélite. “A cada lugar que ele passar, você vai fazer a leitura”.
Pecuaristas são contra a obrigatoriedade (e sugerem alternativas)
O GT criado para tratar do tema, em Brasília, tem até 29 de julho para definir diretrizes para uma possível implementação da rastreabilidade pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
Lideranças de produtores rurais têm reforçado posição contrária à obrigatoriedade, embora admitam que rastrear os animais é algo necessário, ao longo do tempo, para atender demandas dos consumidores, especialmente de alguns países.
Em entrevista ao AgFeed, o pecuarista e presidente da Comissão Nacional de Bovinocultura de Corte da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Francisco Castro, que integra o GT, disse ser contra o sistema mandatório, porque poderá “matar todas as esperanças do pecuarista de poder negociar em qual mercado ele quer participar, podendo agregar valor caso faça a rastreabilidade tão desejada pelos mercados exteriores”.
Durante um painel no Global Agribusiness Forum, em São Paulo, na última sexta-feira, o presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), Sérgio Bortolozzo também afirmou que a entidade “é a favor da rastreabilidade, desde que ela seja uma opção do produtor, e não uma obrigação”.
De qualquer forma, quem participa das discussões admite que a tendência é de que o Mapa imponha a obrigatoriedade.
Segundo Castro, da CNA, hoje o custo para identificar o bezerro é de R$ 3 a R$ 7 por brinco. Enquanto o bovino estiver na fazenda de origem, a identificação não é necessária. Porém, na primeira movimentação do animal é preciso fazer o rastreio.
Ele pondera que, antes da identificação do rebanho ser uma regra, é preciso convencer o pecuarista dos benefícios e ganhos que ele poderá ter. “O produtor rural precisa visualizar o ganho financeiro e de manejo com a rastreabilidade. Tem que mostrar que o rastreio é bom para ele”, comenta.
O manejo também gera um custo indireto, segundo o pecuarista, já que é um trabalho a mais para ser feito na propriedade.
De qualquer forma, quem participa das discussões admite que a tendência é de que o Mapa imponha a obrigatoriedade. Nesse cenário, Castro disse ao AgFeed que o caminho tem sido pedir mais tempo para que os produtores possam se adequar às regras.
A CNA apresentou uma proposta pedindo um prazo de transição de dois ciclos pecuários, caso o Ministério da Agricultura determine que a medida seja obrigatória.
“Cada ciclo pecuário tem quatro anos. Nosso pedido é que o produtor tenha esse prazo, de uns oito anos, para se enquadrar totalmente às regras. As normas a serem estabelecidas pelo Mapa precisam ser condizentes com a capacidade do produtor em conseguir implementar isso“, ressaltou.
A proposta, que ainda não foi discutida pelo grupo de trabalho, deverá ser a principal pauta do encontro do Mapa com os representantes da pecuária, previsto para 12 de julho.
“Na hora que criar essa regra, o frigorífico tem que fomentar, pagar a mais para quem tem o animal rastreado desde a origem. Quando a indústria entender isso, vai facilitar bastante as coisas", opinou o diretor da CNA.
Alternativas em discussão
Francisco Castro contou que o grupo de trabalho já discutiu a forma como será feito o acompanhamento da rastreabilidade do rebanho, por meio de um sistema operacional que deverá ser desenvolvido pelo Mapa.
"Essa questão está pacificada no grupo. Será um sistema implementado pelo Ministério e que valida a identificação do animal. Mas ainda não sabemos como vai funcionar e quais serão as regras", ressaltou o dirigente.
Recentemente, o CFO da Minerva, Edison Ticle, criticou a dificuldade acesso às informações das GTAs, o que poderia acelerar o processo de rastreabilidade.
Paulo Pianez, da Marfrig, discorda. “Não vai ter acesso a nenhuma informação crítica do produtor. Todo estudo necessário para a gente assegurar a integridade das informações do produtor já foram feitos e tem solução de contorno para tudo isso. Quem diz isso é porque não conhece a solução que está sendo proposta”, afirmou.
O executivo da Marfrig diz que a empresa está pronta para atender as regras da União Europeia, que entram em vigor em janeiro de 2025, restringindo a compra de produtos como carne e soja, de áreas onde tenha ocorrido desmatamento.
Ele explicou que como ainda não há o sistema nacional de rastreabilidade, “coube às empresas desenvolver as suas próprias soluções”.
“Nós da Marfrig defendemos que o Brasil já teria condições de implementar um sistema robusto, hoje baseado em lote, que vai se sustentar na composição de CAR mais GTA, que o Brasil já tem. É uma solução que foi desenhada e que foi inclusive apresentada para o governo e com a qual, no espaço de tempo muito curto, a gente daria uma resposta robusta de rastreabilidade da origem até o abate”, defendeu.
Pianez diz que, em paralelo, poderiam prosseguir as discussões para um processo de rastreabilidade individual, “o que demanda mais tempo e mais recurso, porque ele é intenso em tecnologia”.
Francisco Castro lembrou que, no começo dos anos 2000, o Mapa criou o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov), com regras revogadas em 2018. Segundo o pecuarista, a rastreabilidade já era discutida há mais de 20 anos. Contudo, não deu certo.
“Não tinha as tecnologias que têm hoje. Além disso, na época, criaram uma lei sem prazo de transição adequada. A ideia era muito boa, mas era fora do tempo. Acho que agora, em 2024, podemos fazer”, diz.
Com reportagem de Flávya Pereira.