De tempos em tempos a cadeia produtiva do leite no Brasil se revolta contra o aumento nas importações de lácteos do Mercosul, como está acontecendo este ano.
Vem a sequência de protestos de produtores, pressão junto ao governo para que adote medidas de apoio e questionamentos variados sobre as políticas do bloco.
Mas afinal o que está por trás deste problema? Os especialistas descrevem duas questões principais.
Uma delas é que as vacas argentinas e uruguaias, em geral, produzem mais leite que as brasileiras. Não porque a genética é melhor, mas porque as mesmas vacas holandesas, que dominam os plantéis, se alimentam de pastos mais férteis.
A outra questão é que, para ter a mesma produtividade que seus vizinhos, o Brasil precisaria investir muito mais em tecnologia.
Isso porque a intensificação produtiva, em sistemas de confinamento ou mistos, que substitua as pastagens mais pobres em boa parte do País, sai mais caro e não é alcançada para cerca de 80% dos leiteiros nacionais, todos pequenos.
O AgFeed conversou com o mineiro Raimundo Sauer, presidente da Cooperativa Agropecuária de Unaí (Capul) e com o pesquisador da Embrapa, Paulo Martins, ambos concordando com esta quase unanimidade sobre o atual cenário do leite no Brasil.
O fato é que o produto importado chega mais em conta que a média do produzido aqui. O consumo brasileiro vem caindo - hoje é estimado em 163 litros/dia per capita. E o produto importado já atende 10% do nosso mercado.
As importações brasileiras de lácteos, de janeiro a julho, atingiram 135,4 milhões de toneladas – considerando que mais de 90% é de leite em pó.
O volume representa um aumento de 221,8% na comparação com os primeiros sete meses de 2022. Traduzidas por litros, passam de 1,3 bilhão.
Em despesas, ainda conforme o sistema Comex Stat do Ministério do Desenvolvimento, os laticínios gastaram US$ 520 milhões, soma 224% superior ao mesmo período do ano passado – e quase o dobro do recorde de 2017.
O montante importado da Argentina correspondeu a mais de 40%. O país, como o Uruguai, não está sujeito a nenhuma tarifa de importação no Brasil, em função dos acordos do Mercosul.
A fogueira foi acesa com o anúncio de que o governo federal irá importar mais leite para “equilibrar” a oferta, mesmo que os produtores estejam ganhando menos, como está nos registros da Cooperativa Agropecuária Unaí (Capul), do Noroeste de Minas.
Desde maio, cada litro perdeu até R$ 0,20, valendo hoje R$ 2,15 em média, de um total de 10 mil a 12 mil litros diários, segundo Sauer, o presidente.
O setor se mobilizou, através da Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite), que está chamando a categoria para um ato de desagravo no Congresso, dia 16.
Nesta semana, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, em visita à Agroleite, na cidade de Castro, no Paraná, confirmou que o governo está pensando em adquirir mais leite dos produtores brasileiros, pagando acima do preço mínimo de R$ 1,80, estabelecido pela Conab em julho, a fim de melhorar a remuneração dos pecuaristas nacionais.
A manifestação do ministro veio uma semana depois do Rio Grande do Sul registrar um protesto com quase dois mil produtores de leite nas ruas.
As lideranças gaúchas alegam que, no estado, o leite em pó uruguaio chegava por R$ 17 o quilo, enquanto o local custava R$ 25.
Também esta semana a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) passou a defender a retomada de uma tarifa para o leite dos países vizinhos, por meio da inclusão do produto na chamada "lista de exceções".
Independentemente de como ficará a situação pontual, o cenário a rigor não mudará de forma substancial. A captação de leite pelos laticínios pode ter perdido a chance de crescer em torno de 4% este ano, após essa investida dos produtos importados que desmobilizou muita gente.
Em 2022, a oferta das fazendas para as indústrias caiu para 23,8 bilhões, sobre os pouco mais de 25 bilhões de litros de 2021, período igualmente de recuo.
Apesar de ser relativamente baixa a participação dos importados no bolo brasileiro, o prejuízo acaba sendo distribuído para os pequenos produtores, que, sem escala, não conseguem bancar seus custos, diz Paulo Martins, que foi chefe da Embrapa Gado de Leite e atualmente permanece nos quadros como pesquisador.
E o êxodo dessa categoria só faz aumentar o déficit da oferta.
“O leite reage muito à escala de produção”, complementa ele, o que ocorre tanto para cima quanto para baixo.
Geraldo Borges, presidente da Abraleite, reflete a questão do ponto de vista dos produtores pequenos do Brasil, cerca de 80% do total. “A média é de 5 a 6 litros diários de oferta”, diz.
Na Argentina, voltando ao exemplo de produtores familiares, é mais que o dobro.
Borges adiciona que, fora esse “leite social”, no Brasil há o “segundo leite”, o empresarial, em grandes projetos, que já chegam acima de 30 litros/dia, alguns até o dobro.
Mas não imprimem na oferta um volume com o qual os laticínios pudessem abrir mão das importações, embora a produção esteja subindo exponencialmente, seguindo o modelo “americano de produção”, explica Martins.
Em dados da consultoria MilkPoint, relativo a 2022, os 100 maiores pecuaristas leiteiros do País produziram 975 milhões de litros, com uma produtividade que se elevou a 4,75% sobre o ano anterior em termos de média diária.
Para corroborar o que disse o especialista da Embrapa, o estudo da MilkPoint indica que em 83% dessas 100 propriedades opera-se em confinamentos pelos modelos free stall e compost barn, respectivamente, vacas em baias individualizadas e uso intensivo dos compostos orgânicos dos animais na produção de compostagem.
Esse topo de pirâmide produtiva do leite vem conseguindo manter a rentabilidade, garantindo uma boa relação de troca entre produtividade versus custos. E certamente melhorarão neste segundo semestre, com os insumos mais baratos, sendo o milho já abaixo de R$ 58 a saca.
Nesse ponto, o presidente da Capul também acredita que haverá uma melhora para os pequenos agricultores familiares da cooperativa e do Brasil em geral.
O problema é o “carrego” dos últimos anos. Raimundo Sauer recorda que as pastagens foram mais fracas do que já são com a seca de 2022 e quem se manteve no negócio precisou pagar acima de R$ 90 a saca para alimentar as vacas.
“Muitos conseguiam ainda fazer um dinheirinho extra com a venda de bezerros e vacas de descartes, mas esse ano nem isso dá”, lamenta.