O pior cenário traçado na guerra da Ucrânia seria um não recuo da Rússia quanto à renovação do acordo de grãos do Mar Negro, além do agravamento do conflito como nestes últimos dias. Ainda assim, não há no front dos negócios com trigo e milho um déficit substancial que desestabilize a balança da demanda global.
Por mais que as cotações possam se manter em máximas, com os fundos especulando a paralisação das exportações ucranianas, os próximos meses abrigam dados de outras origens que sustentam as posições mais otimistas quanto à oferta.
E, ainda por cima, se considera três outros fatores positivos, complementa o analista da StoneX, João Pedro Baptistini, com a concordância de outras fontes ouvidas pelo AGFeed.
Um desses fatores é que, em algum momento, os grãos do país invadido começarão a ser escoados para portos de países vizinhos, principalmente Romênia e Bulgária, sendo acessados por ferrovias. “Mesmo que haja uma vazão mais lenta ou que não chegue ao volume inicialmente projetado”, acrescenta o especialista.
O segundo fator, é que os grandes consumidores de cereais estão “comprados” com bons estoques, agora recorrendo a José Antônio Ribas Jr., presidente do Sindicarne de Santa Catarina, e a Rubens Barbosa, presidente da Abitrigo, entidades correspondentes às indústrias de carnes e trigo.
E não vale apenas para o Brasil. Se players processadores nacionais se aproveitaram das baixas dos últimos meses dos preços, uma vez que nunca deixaram de monitorar o cenário no Leste europeu sob a lembrança dos primeiros meses da invasão – quando as cotações dispararam -, nos Estados Unidos, Europa e China não está sendo diferente.
“O mercado mundial está bem abastecido, a demanda está controlada, e a instabilidade [de preços] pode até permanecer, mas não haverá problemas”, diz Barbosa, da Abitrigo.
Aqui, acrescenta-se a observação de Ariovaldo Zani, que olha a questão do milho enquanto presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Alimentação Animal (Sindirações): “Importante salientar que o preço da saca de 60kg do milho na praça ‘interior de São Paulo’ [Campinas] sofreu desvalorização que varia de 35% entre março e julho de 2023 e de 45% se considerarmos desde março de 2022”.
Completa-se o terceiro ponto, baseado em fundamento também já bastante absorvido pelos agentes, e que parece estar sendo ignorado pela maioria das análises destes dias nervosos, desde que a Rússia oficializou a não renovação do Black Sea Grains e passou a bombardear os portos da Ucrânia, como o de Odessa.
As informações da própria Ucrânia e também do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, do inglês) determinavam nova quebra na safra de milho e trigo, portanto com redução substancial das exportações do país.
De certa maneira, já estava nas cotações esse encurtamento do disponível ucraniano. “Pode ser que não haja um recuo dos preços aos níveis anteriores [de antes do fim do acordo], mas não vemos riscos de desabastecimento das commodities a não ser para países mais subdesenvolvidos, os mais dependentes da Ucrânia”, estima o analista da StoneX, João Pedro Baptistini.
Vale lembrar que são os africanos que mais acessam os grãos ucranianos. A exceção é a China.
Vistas essas análises de médio prazo, pouco ou nada alarmistas, os números que as corroboram são robustos.
Das outras origens
Para o trigo, em termos de oferta das outras origens, só pelo segundo maior produtor mundial, os Estados Unidos, vê-se mais de 2 milhões de toneladas em revisão recente do USDA, para 47,3 milhões de toneladas. Além de alta dos estoques, acima de 16,1 milhões de toneladas.
O presidente da Abitrigo também chama atenção para a Rússia, hoje a líder desse mercado. Com mais de 84 milhões de toneladas, também apontadas para safra 2023/2024, e com inventários de cerca de 12 milhões de toneladas, “duas vezes maior que a média de cinco anos”, em reporte da SovEcon, consultoria russa.
Na Europa, apesar da onda extrema de calor, os números são positivos e combinam com a expectativa de nova safra brasileira, também de recorde, em 11,5 milhões de toneladas, que compensarão a quebra argentina.
“Vamos manter as importações em cerca de 5 milhões de toneladas”, acredita Rubens Barbosa, apontando o trigo russo como bastante fluído para o Brasil.
Tanto como o trigo, o milho tem demanda bem regrada, com a China sem grandes movimentos, e com oferta bem abundante. Na StoneX se considera que, se houver mesmo uma baixa na produção dos Estados Unidos, será para em torno de 380 milhões de toneladas, ante expectativa mais conservadora de 389 milhões.
E no Brasil, onde os relatórios da consultoria são mais otimistas, se aguarda 105 milhões de toneladas no milho de inverno (alta acima de 10% sobre o ciclo anterior), completando as duas safras 2022/2023 em 136 milhões.
Mais favorável, ainda, do que as 128 milhões de toneladas, em dados da Conab, que Ariovaldo Zani já enxerga como suficientes para dar conta do consumo brasileiro de cerca de 79 milhões de toneladas, integrando rações, etanol e outros destinos.
Da Ucrânia
Entre o que a Ucrânia deveria entregar com o corredor marítimo aberto ou o que poderá ser distribuído para outros portos de países amigos, não haveria motivos para maiores alarmes vis-à-vis as estatísticas do disponível mundial.
Então, o especialista da StoneX chama atenção para o relatório de julho do USDA, divulgado antes do fim do acordo do Mar Negro, sobre as exportações esperadas dos produtores ucranianos de milho, em 19,5 milhões de toneladas. Já revisado para menor sobre os números de junho, em 21,2 milhões.
Por qualquer dos meses, 30% a menos que em 2022, resultado de uma quebra de 80% na safra, aguardada em 24,7 milhões de toneladas, segundo informações produzidas pelo governo de Kiev.
Em relação ao trigo, o cenário também é dramático, quando se junta os prejuízos das lavouras por conta da guerra.
Diante de uma produção, no ano comercial 2023/2024 recém-iniciado, de 16,5 milhões de toneladas, em mais de 20% menor sobre o passado, os embarques previstos são de 9,8 milhões de toneladas.
Se a escalada da guerra não tomar proporções mais alarmantes, aos poucos esse disponível acabará saindo via ferroviária até os terminais marítimos búlgaros e romenos. Aliás, como foram usados nos primeiros quatro meses de guerra até que fosse feito o primeiro acordo do Mar Negro.
João Pedro Baptistini acredita que pela Romênia haja uma capacidade de esvaziar o montante ucraniano em até 5 milhões de toneladas.
Ainda que haja certa reclamação dos agricultores desses países, temerosos de que seus corredores sejam usados também para concorrência interna, a União Europeia deu indicações de que ajudará nesse escoamento.
Bem ou mal, traduzem o analista da StoneX e o presidente da Abitrigo: esses grãos vão acabar saindo e menos problemas haverá daquilo que já pouco se esperava da Ucrânia.