O fogo está aceso nas relações entre dois setores gigantescos da economia brasileira. O braseiro foi atiçado na noite da segunda-feira 29 pela divulgação de uma norma da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), propondo a seus associados o endurecimento na concessão de crédito a frigoríficos que não estiverem em conformidade com sua política ambiental.

A resposta da indústria veio com uma nota da Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carnes (Abiec), que jogou combustível em uma polêmica que, de certa forma, não era nova.

A sugestão da Febraban, endossada por 22 bancos associados, é de que as instituições façam um bloqueio total de crédito, até 2025, para frigoríficos que adquirirem animais de áreas desmatadas ilegalmente.

A medida não era exatamente uma surpresa, ao menos para parte da cadeia produtora, já que desde março essas regras já estavam definidas. Mas o anúncio, em reportagem do Estadão, de que elas seriam oficializadas, provocou tensão, embora a própria Abiec já estivesse a par da decisão dos bancos.

Em sua reação, na manhã da terça-feira, a entidade que representa os frigoríficos manifestou “apoio a todas as iniciativas que aumentem os padrões de sustentabilidade em todos os elos da cadeia da pecuária brasileira”.

Mas foi categórica quanto a cobrar dos bancos para que suas áreas de compliance e due diligence ajam também contra a liberação de recursos de produtores com passivos ambientais. “Nós assumimos nossas responsabilidades, mas não aceitamos que outros setores terceirizem as suas responsabilidades para os frigoríficos”, dizia a nota.

Em meio ao calor da crise, porém, integrantes da cadeia da pecuária foram destacando as convergências entre as opiniões dos dois setores, inclusive com apoio de produtores rurais.

“Eu faço a rastreabilidade completa, desde 2022 não desmato mesmo tendo área para isso, e quero que todo mundo a faça também”, afirma Mauro Lúcio Costa, presidente da Associação dos Criadores do Pará (Acripará), o estado mais visado quando o assunto é a pecuária no centro do debate ambiental.

Tanto Abiec como Febraban sabem onde está o calcanhar de Aquiles ambiental da cadeia da carne. Complementando a nota divulgada na terça, o diretor de Sustentabilidade da Abiec, Fernando Sampaio, chama a atenção para uma das principais dificuldades da indústria, a rastreabilidade do gado do “fornecedor indireto”,

“Nesse produtor mal consigo chegar, quando muito de forma indireta”, diz Sampaio.

Na maioria dos casos, o indireto é o fornecedor de bezerro, nos confins paraenses, ou aquele produtor que vende boi magro ao confinador, como lembra o produtor daquele estado do Norte.

A Abiec reforça, que “desde 2009, as indústrias do setor vêm implementando e aperfeiçoando seus sistemas de monitoramento de critérios socioambientais de seus fornecedores”.

Nesse caso, portanto, trata do fornecedor direto, aquele mais fidelizado que o frigorífico reconhece não comprar “boi do vizinho” para completar suas obrigações contratuais, como comentou o diretor de Sustentabilidade.

O indireto é o elo da cadeia mais fragilizado. Tanto que a Minerva Foods assim o reconhece e se esforça para que seus parceiros (diretos) utilizem a “a ferramenta SMGeo Prospec, aplicativo que permite aos produtores realizar pesquisas detalhadas, com acesso a dados históricos e análises de conformidade socioambiental, auxiliando-os no mapeamento de riscos antes de realizar qualquer comercialização”.

Quanto aos fornecedores diretos, o terceiro maior grupo frigorífico brasileiro, em nota enviada ao AgFeed sobre a polêmica, escreveu que tem iniciativas de monitoramento do gado com objeto de atingir o desmatamento ilegal zero até 2030.

É o caso, também, do Frigorífico Rio Maria, com duas unidades no Pará, e que abate 750 bois diários. Seu proprietário, Roberto Paulinelli, diz estar contratando uma plataforma de rastreabilidade para cobrir todo esse “buraco”. E, há dois anos, já não tem comprado bezerro sem rastreabilidade para sua própria recriação e engorda, garante o empresário.

A questão da cria mencionada como um problema paraense, tanto quanto à regularização de áreas embargadas, é a que está diretamente ligada ao desmatamento ilegal.

“O desmatador leva a vaca para o fundão, onde está o maior problema, e deixa os garrotes nas áreas legais”, explica o presidente da Acripará, entidade que agrega boa parte dos proprietários das 120 mil cabeças do Estado. As áreas legais são as que estão mais perto dos frigoríficos e mais passíveis de fiscalização.

Em relação à regularização, outro produtor da região, Maurício Fraga, admite que há muitos produtores que preferem a ilegalidade, porque com passivos elevados o custo de reflorestamento fica alto, além do que os governos não oferecem condições para esses pecuaristas se enquadrarem. “Se os bancos endurecerem mesmo, poderá travar a cadeia”, pontua.

Ao fim e ao cabo, dentro de um cenário de endurecimento crescente quanto aos parâmetros ambientais, que atravessa os elos da cadeia, como supermercados, importadores e o governo, atuando cada vez mais forte agora com o Ibama, como argumentou o diretor da Abiec, percebe-se que há quase um consenso de que esse caminho, renovado agora pelos bancos, não tem volta.

“Irreversível e com ferramentas [de rastreabilidade] existentes”, amplia o consultor em sustentabilidade José Carlos Pedreira de Freitas, por sete anos coordenador da Liga do Araguaia, agrupamento de criadores do Mato Grosso que avançam nessa questão com várias parcerias com frigoríficos e ONGs e mantém vários programas de fomento.

Ele complementa: “Para o convertido, não é preciso pregar; para os não convertidos, não temos tempo a perder. Essa é uma agenda que veio para ficar e não há mais tempo a perder”.