O futuro da maior fabricante de máquinas agrícolas do mundo passa pelo Brasil, na visão do executivo que desde o início de 2022 assumiu o comando da empresa por aqui. Estamos falando de Antonio Carrere, que diz ter “coração uruguaio e alma brasileira".
O CEO da John Deere no Brasil diz que a empresa dobrou de tamanho na América Latina nos últimos dois anos, puxada pelo forte avanço da agricultura do País. Ele minimizou o começo de ano negativo para o setor de máquinas agrícolas e também considerou como algo temporário o momento de preços mais baixos para as commodities, fatores que costumam impactar o desempenho das empresas de insumos e, é claro, a indústria de máquinas agrícolas.
Carrere acredita que será uma "super década" para o agro, baseada na demanda crescente não apenas por alimentos, mas também pela energia renovável que o Brasil é capaz de fornecer. Além disso, tem foco nos investimentos em tecnologias que utilizem a inteligência artificial e máquinas autônomas que aliem a eficiência com práticas mais sustentáveis.
Nesta entrevista exclusiva ao AgFeed, o executivo detalha também os investimentos da empresa para expandir a produção no Brasil. Confira:
Como avalia o desempenho das vendas do setor de máquinas este ano?
As características deste ano produtivo do Brasil estavam todas positivas. Pelo fato de sermos uma empresa global, vou comparar, por exemplo, com a Argentina. Lá o clima não acompanhou, as políticas são complexas para o setor privado. Aqui você tinha tudo ao contrário. O clima super acompanhou. Na maior parte do país, os preços estiveram muito bons durante grande parte do ciclo produtivo, mas tivemos uma grande mudança política. Do ponto de vista agronômico estava tudo dado para que fosse um ano histórico, mas a mudança política trouxe um ruído importante para o agro, que impactou na transição. Poderia ter sido um ano ainda mais extraordinário. O ano mostra um começo bastante lento, mas à medida que o cultivo foi progredindo, a soja colhida, depois o plantio da safrinha do milho e do algodão, o ano foi melhorando. E continua em processo de melhoria.
Acredita então que as vendas crescem em 2023 em relação ao ano anterior, mesmo com as commoditiies mais baixas?
Sim, acredito. As commodities estão mais baixas agora, isso vem ocorrendo nas últimas semanas. Entendo que o produtor se apavora com o que posso chamar de “fotos do tempo”. O filme como um todo é muito positivo, mas se você tira uma foto de hoje, aí sim, ela é distinta da foto do mês passado. A foto de hoje é ruim comparando com este período, mas ela é muito melhor agora se comparada com três anos atrás. Precisamos comparar com a tendência, onde estivemos e para onde estamos indo.
Há planos de expansão no Brasil, fazer investimentos fora do Rio Grande do Sul, talvez em Mato Grosso, que é o líder na produção agrícola nacional?
Os planos da John Deere para o Brasil são grandes. Vamos continuar a investir no Brasil como um mercado. Agora, se vamos colocar uma fábrica nova em outro lugar no país, isso vai se dar ao longo do tempo. É prioridade expandir, mas não é prioridade especificamente em Mato Grosso, por exemplo. Vamos expandir onde faça o melhor para a empresa, avaliando junto com os estados e os produtores, avaliando diferentes variáveis. Pode ser uma expansão por meio de fábricas ou unidades.
A prioridade agora é adequar unidades existentes então, ao invés de construir novas?
Os dois. Fazer novas e renovar as antigas. Todos os anos nós investimos de forma recorrente, milhões de dólares, nas fábricas do Brasil. Para nós isso é comum. À medida que a demanda cresce, expandimos nossa capacidade. Por exemplo, em Horizontina, no Rio Grande do Sul, nós estamos investindo mais de R$ 50 milhões este ano na expansão da fábrica. A unidade de Catalão, Goiás, também expandiu sua capacidade para fabricar mais pulverizadores. Em Montenegro, mais capacidade para produzir mais tratores.
Considerando esse cenário atual, qual a visão de futuro próximo para a John Deere?
A John Deere trabalha tendências a longo prazo. Obviamente, vivemos ano após ano, semana a semana, mês a mês, mas estamos em permanente avaliação das tendências a longo prazo, porque nós fazemos investimentos muito grandes e precisamos entender essas tendências.
E quais são essas macrotendências?
Uma delas é o crescimento da população global, com países novos cada vez mais importantes. Até agora todo mundo conhece a China como o motor do mundo, mas tem uma Índia que é um país que está em crescimento importante. Esse ano vai crescer quase 6% e a China vai continuar a crescer. Tem outros países, como Bangladesh, Vietnã, Indonésia, com uma população que muda a sua dieta alimentar na medida que as economias vão melhorando. Isso permite que a demanda evolua e que precisemos de mais grãos e de mais proteína. São características únicas, em especial para a América Latina e para o Brasil. Essas variáveis globais e tendências sinalizam que nós vamos viver uma "super década". E nós não enxergamos um limite. O Brasil e a América Latina vão se desenvolver de forma muito importante. São variáveis externas ao Brasil, são apolíticas. A política não impacta a fome ou a demanda externa pelo grão, pelo alimento e pela proteína, isso é muito importante.
O que mais justifica seu otimismo?
O segundo ponto é que o mundo está começando a descobrir a importância do agro no que se refere à energia. Até agora, a grande revolução tem sido a eletricidade, os carros elétricos. Só que poucas pessoas até agora se importavam de onde saía essa eletricidade. E a realidade é que, se nós olharmos a matriz energética do mundo, a produção de energia elétrica não é sustentável. Muitos países ainda queimam muito carvão para produzir energia elétrica e não tem coisa pior do que queimar carvão. Então, agora que o mundo percebe que não vai dar para converter todos os carros em elétricos, percebe que nós precisamos utilizar energias alternativas ou combustíveis alternativos. Você tem o biometano, que pode sair do lixo, por exemplo, ou o bagaço de cana.
"O produtor se apavora com o que posso chamar de 'fotos do tempo'. O filme como um todo é muito positivo"
O Brasil está bem posicionado nesse contexto?
O Brasil é um dos maiores produtores de etanol do mundo a base de cana-de-açúcar, utilizando toda uma indústria, que também tem o carro flex. O mundo vai começar a entender o benefício do etanol a base de cana ou o etanol a base de milho, que é muito forte agora no Brasil. São quase 18 plantas processadoras de etanol de milho. Temos também o biodiesel a base de soja. Este ano o Brasil vai ser maior em processamento de soja do que a Argentina, produzindo farelo, é impressionante. Então são várias variáveis globais, além da demanda do alimento. Acho que a demanda a longo prazo de energia renovável do Brasil, o mundo ainda não descobriu.
E como a John Deere se insere nesse processo? Embora exista a demanda crescente, há também maior preocupação com a emissão de carbono, por exemplo, algo que afeta o setor de máquinas.
Primeiro eu vou dar uma resposta que sai um pouco das máquinas. Nós, há 15 anos, lançamos no Brasil a Rede ILPF, a Rede Integração Lavoura, Pecuária e Floresta, junto com a Embrapa. Esta prática traz a melhoria na questão do carbono, em um ciclo diverso como o ILPF, o impacto de carbono é extremamente positivo. E, segundo, que você ganha em diversidade econômica para o produtor. São dois grandes ganhos, além de um terceiro que é a saúde da terra, que vai melhorando por benefícios agronômicos. A John Deere no Brasil está fazendo ações tangíveis para trazer benefícios ao meio ambiente.
Como essas ações chegam às máquinas?
De um ponto de vista macro macroeconômico, nós temos três grandes focos. Um é que o motor atual seja cada vez mais eficiente. Nós estamos trazendo máquinas que consomem cada vez menos diesel, este é primeiro ponto. Apresentamos na Agrishow uma colhedora de cana, a X9, que consegue colher 45% mais do que a máquina atual e utiliza 20% menos de combustível. É o dobro de produtividade.
Qual o segundo ponto?
Estamos muito focados em investigar, investir na pesquisa e desenvolvimento de combustíveis alternativos. Estamos avaliando diferentes combustíveis. Um é o etanol, o outro é o biodiesel e tem o terceiro, que é uma realidade para algumas máquinas menores, que é a eletricidade. Entendemos que para as máquinas menores, que nós chamamos de soluções urbanas, vamos ter motores elétricos. Mas para essas máquinas maiores vamos precisar de um combustível alternativo, provavelmente biodiesel e etanol.
Seria já para utilizar o B100 (100% puro, sem mistura com diesel de petróleo) no caso do biodiesel?
Isso. Estamos fazendo esse tipo de pesquisa, estamos investigando. Por isso, hoje eu não vou falar qual o combustível que nós estamos fazendo. Nossas pesquisas são muito profundas. Já temos algumas soluções que estão funcionando, só que eu preciso que funcionem em todos os diferentes climas. Além de os nossos motores e máquinas trabalharem de forma consistente e sustentável, a distribuição do combustível deve ser comercialmente viável para o produtor. São várias etapas de toda uma cadeia que nós estamos investigando. Mas eu diria que nos próximos 24 meses estaremos anunciando quais combustíveis alternativos serão viáveis para o produtor no Brasil. O interessante é que a John Deere fabrica seus próprios motores. Então, para as máquinas maiores, quando anunciarmos uma solução para motores, será para todas as nossas máquinas grandes.
"Para as máquinas menores, vamos ter motores elétricos. Mas para as maiores vamos precisar de um combustível alternativo, provavelmente biodiesel e etanol"
E há um terceiro ponto estratégico...
Sim, é a sustentabilidade, com a inteligência artificial. Lançamos na Agrishow uma tecnologia que se chama "See & Spray". Na tradução literal para o português é enxergar e aplicar. É um nome patenteado. Ela trabalha no pulverizador. A máquina tem inteligência artificial, tem visão computacional e tem machine learning. As três atuam em conjunto, simultaneamente. A máquina vai trabalhando no campo, na sua velocidade tradicional, mas vai enxergando e diferenciando. E aqui está a novidade. Ela diferencia verde com verde. Você tem uma planta correta (a cultura) e uma planta de erva daninha. A máquina identifica qual é a erva daninha e aplica a quantidade certa de químico para a etapa de crescimento da planta. Em vez de você estar aplicando o químico em toda o talhão, você agora vai aplicar químicos só numa planta, na quantidade certa. Com isso, você vai economizar 75%, no mínimo, de quantidade de produto que você aplica na sua fazenda. É o impacto sustentável, percentual impressionante.
Essa redução se dá em função da inteligência artificial?
Pela visão computacional e pelo machine learning. Já está operacional nos Estados Unidos. As ervas daninhas são diferentes no Brasil, então a máquina tem que ir aprendendo. Quando for lançada a máquina, já vai ter o mínimo conhecimento. Para que ela aprenda, nós fazemos isso de forma interna. Ou seja, nós estamos utilizando as máquinas na fase de testes.
Quando deve ser lançada no Brasil?
Nós fazemos sempre os lançamentos em etapas. Eu já falaria em 2025/2026.
Em relação aos combustíveis, qual o investimento que está sendo feito?
O que eu posso te dar é uma cifra assustadora. Nós somos hoje uma empresa de US$ 50 bilhões global, o que é um recorde absoluto. Estou falando do último reporte financeiro que foi feito. Investimos, nos últimos 12 meses, US$ 5 bilhões em pesquisa e desenvolvimento global, o que se traduz a quase US$ 14 milhões por dia, incluindo sábado e domingo. É impressionante.
A maior fatia está sendo direcionada a energia renovável?
Não, está indo para a tecnologia da máquina. Estamos no processo de tornar as máquinas cada vez mais inteligentes. Cada vez mais elas estão aprendendo, cada vez mais automáticas para, eventualmente, trazer as máquinas autônomas.
Essa é a principal tendência da próxima geração de máquinas agrícolas?
A tendência é que as máquinas tenham inteligência artificial, visão computacional e machine learning para que elas se tornem cada vez mais inteligentes, para que elas sejam cada vez mais automáticas e eventualmente se tornem autônomas. Antes de chegar lá, nós precisamos que as máquinas aprendam e trabalhem. Então, o que estamos fazendo? Todas as nossas máquinas são conectadas hoje. Então você tem Wi-Fi ou celular ou conectividade por satélite, e as nossas máquinas geram uma quantidade de dados que vão para o centro de operações no cliente ou no concessionário. E somos a única empresa, isso é o mais importante, que envia dados de retorno para a máquina. Ninguém pode fazer isso.
Por que isso é importante?
Porque se eu identifico que a máquina está fazendo algo errado, uma pessoa num centro de comando manda este retorno, com as instruções. Outro diferencial é que a John Deere é dona do processo e da tecnologia. Nós criamos nossa inteligência artificial, são nossas câmeras, são nossos engenheiros desenhando o machine learning, o que é bem diferente de outras empresas que trabalham com parcerias.
Este modelo deve continuar ou haverá mais parcerias com startups?
Temos hoje um centro de operações que é uma tecnologia aberta, onde certas aplicações ou certas startups aprovadas pela John Deere podem entrar e trabalhar diretamente com os produtores. Entendemos que nós somos a fonte da informação e que o produtor pode escolher e trabalhar com diferentes parceiros. Temos hoje mais de 200 parceiros aprovados. Trabalhamos muito a parte de segurança dos dados, precisamos sempre entender quem está usando os dados, para qual objetivo, para assegurar que o cliente tenha segurança.
A expansão da tecnologia vai se dar também por aquisições, eventualmente, de tecnologias desenvolvidas por startups?
Nossa estratégia é desenvolver a tecnologia de forma interna ou comprar empresas, para acelerar não só nossa capacidade de conhecimento, mas também para o lançamento de tecnologias.