A Estônia é o país com mais unicórnios per capita. Com programas de incentivo em inovação digital para empreendedores do mundo todo, a pequena nação com apenas 1,3 milhão de habitantes, encravada entre a Rússia e o mar Báltico, tem mais de 1,3 mil startups (uma para cada mil moradores). Dez delas já são avaliadas em mais de US$ 1 bilhão e são usadas diariamente no mundo inteiro -- Skype e Wise, por exemplo.
É nesse ambiente promissor que uma cientista saída de Mococa, no interior de São Paulo, sonha em criar também um unicórnio. O primeiro passo já foi dado. Nemailla Bonturi e seu sócio, Petri Jaan-Latvee, receberam um investimento pre-seed de um grupo de companhias como Nordich Foodtech VC, um dos principais fundos de venture capital da Finlândia, e EAS, que fomenta o ecossistema de startups na Estônia.
São 1 milhão de euros para estruturar a Äio, empresa criada há pouco mais de um ano e que tem como estrela um microorganismo estudado por Nemailla desde os tempos de doutorado em Engenharia Química na Unicamp, em Campinas. Chamado por ela de “Red Bug”, ele tem alguns superpoderes, como transformar resíduos de atividades agroindustriais, como serragem ou melaço, em óleos e gorduras comestíveis que podem ser utilizados pelas indústrias de alimentos ou de cosméticos, entre outras.
“É um bichinho com uma cor bonitinha, meio laranja, meio rosa”, brinca Nemailla, em entrevista ao AgFeed. “Através da fermentação, esse microorganismo transforma, internamente, açúcares e fontes de carbono em lipídeos ricos em caroteno, similar ao que existem na cenoura”.
O “bichinho” é conhecido de pesquisadores de todo o mundo, mas a brasileira domina um “processo secreto” que permite a ela desenvolver soluções sob medida para as necessidades de empresas na substituição de gorduras animais e óleos como os de palma e de coco, insumos altamente demandados e também contestados pelo seu impacto ambiental.
“Transformar resíduos secundários em produtos de alto valor agregado é muito promissor e tem um enorme potencial de negócios”, afirma Mika Kukkurainen, sócio-fundador do Nordic Foodtech. O grande desafio da Äio agora é justamente criar escala na produção para responder a essa potencial demanda.
Parte dos recursos do primeiro aporte foi usado para alugar plantas em diferentes países europeus, como a Hungria, para rodar pilotos e atender a empresas interessadas em testar os produtos da Äio. A startup já tem uma parceria com a Valio, uma das maiores empresas de laticínios da Finlândia, que tem apostado alto em produtos alternativos para carne e leite.
A Valio, explica a empreendedora, busca um destino rentável pata um resíduo de baixo valor, o permeado de lactose. “Desenvolvemos um produto alimenta a nossa levedura e vai produzir uma alternativa de gordura para carne substituta. Conseguimos oferecer mais gosto e textura na carne alternativa”, garante.
Outra parceria é com uma empresa estoniana que extrai açúcares da serragem, resíduo abundante da Estônia e normalmente usado apenas para a produção de pellets para queima no inverno. “Podemos dar um destino mais nobre para ela”, diz Nemailla. “A partir do açúcar produzido por esse parceiro, podemos gerar, através de fermentação de precisão, lipídios e gorduras com maior valor”.
As possibilidades são infinitas na programação do “red bug”. Nemailla imagina atender a demandas bem específicas de possíveis clientes: uma fabricante de hamburguer vegano, que precisa de uma gordura com textura e ponto de cozimento determinado? “Podemos fornecer.” Uma empresa de cosmético que necessita de um lipídeo com caraterísticas sob medida? “Podemos trabalhar sob demanda da indústria, com receitas únicas para atender demandas específicas”, explica.
A gigante americana Cargill, por exemplo, encomendou um estudo para uso da levedura no desenvolvimento de rações para peixes enriquecidas com antioxidantes, também presentes nas gorduras que a Äio pode produzir. “No futuro, pretendemos buscar colaborações em verticais diferentes”, afirma Nemailla.
De Mococa para a Estônia
Criada em Mococa, no interior paulista, Nemailla formou-se em Biotecnologia pela Unesp, em Assis, e depois transferiu-se para Campinas, onde fez doutorado. Foi lá que conheceu a levedura com que trabalha até hoje. “É o segundo relacionamento mais longo da minha vida”, diz.
Elas se conheceram em um projeto que deu errado. Suas pesquisas, então, eram ligadas a uma empresa, que em determinado momento decidiu encerrar a colaboração. Seu orientador, então, sugeriu que ela mudasse o rumo das pesquisas para a área de fermentação com microorganismos oleaginosos. E o “red bug” entrou na sua vida.
Sua primeira tentativa foi usar a levedura na produção de óleos combustíveis substitutos do diesel, mas a competição com a indústria de petróleo não se mostrou animadora. Então, foi trabalhar em uma empresa de biologia sintética.
Em 2016, em meio à crise do mensalão, ela começou a vislumbrar uma carreira no exterior. “Toda vez que tem instabilidade política, quem sofre primeiro é a ciência e as universidades”, diz. E se deparou com uma oportunidade na Estônia. Foi pesquisar e animou-se com o que viu: um país que apostava na inovação.
Selecionada como pesquisadora na Universidade de Tartu, segunda maior cidade do país, foi trabalhar como pesquisadora na equipe do atual sócio, Petri Jaan-Latvee. Ele logo se afeiçoou à levedura, adotada como foco nas pesquisas do grupo. Tanto que eles a levaram junto quando foram convidados a se mudar para a a Universidade Tecnológica de Tallin, a capital estoniana.
Até que, em janeiro do ano passado, foram mordidos pela mosca do empreendedorismo. “Depois de seis anos trabalhando juntos, estávamos prontos para nos aventurar e usar todo potencial da nossa levedura para substituir fontes não sustentáveis usadas pela indústria. Encarei a vida louca de mudar de cientista para empreendedor. Hoje jpa estou mais confortável nessa pele”.
A cientista aprende finanças
Como sócia da Äio, Nemailla já discorre com mais segurança no jargão do business. Foi atrás de recursos e encontrou o preseed, utilizado na contratação de pessoal – hoje são seis, sendo duas em P&D, uma em patente e regulações e outra produtos, venda e marketing, além dos sócios.
A corrida por dinheiro apenas começou. Ela agora aplica para diferentes grants em fundos de investimento em pesquisa, “o melhor dinheiro que a empresa pode ter”, com o objetivo de desenvolver e construir uma planta piloto própria com capacidade de produzir 10 a 20kg por semana. E organiza a casa para, em 2024, lançar-se em uma rodada de captação série A, que permitiria levar a produção para 750 toneladas/ano.
É pouco, diante do potencial imaginado para seus produtos junto a indústrias com grande demanda por esse tipo de insumo. Uma solução já prevista seria licenciar a tecnologia da Äio para empresas que tenham capacidade de produzir localmente, a partir dos resíduos de cada região. No Brasil, por exemplo, Nemailla imagina associações com usinas de etanol, usando como matéria prima o melaço resultante do processo de produção do combustível. “Poderíamos ter um módulo junto a cada usina”, diz.
Nemailla pensa grande no país dos unicórnios. O próprio nome da empresa, Äio, dá uma pista. Amante de folclore, ela queria algo com essa raiz popular. E encontrou um sob medida na Estônia. “Os próprios estonianos sabem pouco a respeito, mas Äio é, no folclore deles, o deus dos sonhos”, explica.