Há algumas décadas, ninguém poderia imaginar que a nova fronteira a ser ocupada pelos integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) seria o mercado de capitais.
Conhecido pela luta em defesa da reforma agrária e da agricultura familiar e pela produção em assentamentos espalhados pelo Brasil, o MST sempre se colocou contra o sistema financeiro convencional.
Mas, para financiar sua produção, cooperativas associadas ao MST passaram a habitar a Faria Lima nos últimos anos, mirando os bolsos dos simpatizantes do movimento.
Agora, mais uma estreia no mercado de capitais com um parceiro de peso: João Paulo Pacífico, investidor-ativista e CEO do Grupo Gaia.
A Cooperativa dos Produtores Orgânicos de Reforma Agrária de Viamão (Coperav) e o Gaia estão lançando nesta quinta-feira, dia 7 de novembro, uma emissão de R$ 2,5 milhões em Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs) no mercado.
Localizada em Viamão (RS), cidade vizinha a Porto Alegre, a cooperativa produz principalmente arroz orgânico e reúne 150 integrantes do Assentamento Filhos de Sepé, o maior do Rio Grande do Sul, ocupando uma área de 9,4 mil hectares.
Próximo à RS-040, rodovia que liga a capital gaúcha ao litoral do Estado, o assentamento foi criado no fim de 1998 em uma propriedade que tinha dívidas com a União.
Durante décadas, a área pertenceu até mesmo a um antigo barão da imprensa gaúcha, Breno Caldas, que liderou durante boa parte do século passado a Companhia Jornalística Caldas Júnior, proprietária do centenário jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, fundado em 1895 e até hoje em circulação, atualmente controlado pelo Grupo Record.
A Coperav comercializa os produtos sob a marca Origem Orgânica e, na safra 2022/2023, registrou uma produção de 7 mil toneladas.
O CRA servirá para o capital de giro e custeio de produção da cooperativa, que também produz hortaliças, frutas, panifícios, leite e mel.
A taxa de remuneração do CRA será de 12% ao ano. O prazo formal dos papeis será de 35 meses, mas a expectativa é de que haja amortizações extraordinárias mensais e quitação antecipada até o 25º mês da operação.
Não é a primeira vez que Pacífico participa de emissões com o MST. Em 2020, a securitizadora de Pacífico, a Gaia, viabilizou a primeira emissão de CRAs para uma cooperativa ligada ao movimento, a Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), de Nova Santa Rita (RS), na região metropolitana de Porto Alegre, no valor de R$ 1,5 milhão.
Logo em seguida, em 2021, veio a maior das operações até aqui, quando foram emitidos R$ 17 milhões em CRAs para sete cooperativas ligadas ao MST – Coana, Coapar, Coopaceres, Cooperoeste, Cootap, Copacon e Copavi.
Além do volume ser maior, o investimento desta vez foi aberto ao público em geral – o primeiro esteve restrito a um valor mínimo de R$ 100 mil, inibindo o apetite de investidores pessoas físicas. Com apenas R$ 100, qualquer pessoa poderia fazer seu aporte.
No ano passado, a Coapar novamente fez uma emissão, desta vez sozinha, no valor de R$ 3 milhões.
Agora, a Gaia resolveu apostar em uma parceria com a plataforma Bloxs para rodar o novo CRA do MST. Os títulos não serão oferecidos no mercado secundário.
“No modelo anterior, as pessoas tinham que abrir conta na corretora e daí, via corretora, investir. Então era mais complexo. Agora, a pessoa já consegue investir via plataforma. A gente tirou uma burocracia”, explica.
O valor mínimo será um pouco maior dessa vez, R$ 1 mil, pela dificuldade de liquidez do título, segundo Pacífico.
“É um ativo que não tem liquidez. Quem investir vai ficar no prazo todo recebendo. No caso de quem só consegue conseguir investir 100 reais, acho que é melhor colocar o dinheiro em algo com bastante liquidez”, afirma.
A ideia é mirar em um público de “classe média”, nas palavras de Pacífico. “O investidor que quer investir no MST é uma pessoa mais de classe média, não um investidor profissional [que tem mais de 10 milhões]”, afirma.
Pacífico ressalta que o investimento é relevante não apenas para fortalecer a agricultura familiar, mas também pela vasta capilaridade do MST em todo o país.
"O MST é um movimento social de grande relevância, independentemente das opiniões que se tenha sobre ele. Hoje, são mais de 160 cooperativas vinculadas ao movimento em todo o Brasil", afirma ele.
Doação de R$ 40 milhões
O movimento também vai participar de um outro investimento recente feito por Pacífico. Em outubro, uma fazendeira de Minas Gerais, Gislaine Rosa, fez uma doação de R$ 40 milhões em ativos e uma propriedade de 1,5 mil hectares para a Gaia.
O encontro entre os dois se deu de forma um tanto prosaica. “Eu não a conhecia, mas ela me conhecia das redes e ela estava tentando contato comigo. Até que, num belo dia, eu estava em um evento onde estava uma amiga de uma amiga dela e ela deixou um papelzinho com uma pessoa da organização do evento que dizia: “Gislaine Rosa, proprietária de fazenda, quer entrar em contato com você” e um número de telefone”, recorda.
Rosa e Pacífico começaram a trocar mensagens, mas o CEO da Gaia, imerso em uma agenda extensa, não conseguiu dar andamento à conversa – até que a fazendeira deu um ultimato: “Gostaria que a Gaia ou você fossem meus ‘herdeiros’, meus parceiros para transformar a fazenda”.
“Aí falei: ‘Opa, peraí, como assim?’ Acho que é um negócio um pouco maior, não é só mais uma pessoa aventureira com uma ideia de transformar o mundo, é uma coisa real e grande. Isso foi numa sexta-feira. Na segunda-feira, eu estava conversando com ela”.
Os dois começaram então a discutir um modelo para assegurar a perenidade da propriedade, localizada em Campo Belo, no Sul de Minas Gerais, a 226 quilômetros de Belo Horizonte, que produz soja, café e gado.
A ideia foi montar um fundo patrimonial, chamado Joaquim Rosa Cambraia, o nome do pai de Rosa, a ser administrado pela gestora de fundos Gaia Legado, do Grupo Gaia, de Pacífico.
Ferramenta utilizada por organizações sem fins lucrativos e universidades, os fundos patrimoniais são geralmente criados a partir de doações iniciais que dão sustentação financeira no longo prazo à instituição ligada ao veículo.
“Eu falei para ela que quem mais entendia de agricultura familiar e de agroecologia no Brasil era o MST, ela adorou e aí eu chamei o movimento para participar”, afirma Pacífico.
O modelo de atuação ainda está em processo de formatação, mas a ideia é que o movimento dê assistência técnica à propriedade, que deve passar por um processo de reflorestamento, trabalhando sob o sistema agroflorestal, em que árvores e culturas agrícola convivem dentro de um mesmo espaço e que é considerado um dos principais caminhos para o sequestro de carbono no campo.
A intenção é que mais de 500 pessoas vivam na propriedade, trabalhando no cultivo e repartindo coletivamente os ganhos com a produção.
Quem é Pacífico
Quem vê João Paulo Pacífico nas redes sociais cobrando e criticando publicamente empresas e políticos, de petroleiras poluentes ao prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, talvez nem imagine que um dia ele próprio já financiou condomínios de alto padrão e que seu grupo já acumulou R$ 20 bilhões em operações de securitização.
“No passado, eu financiava coisa que não era tão legal assim, financiava prédio de rico e shopping. Agora a gente financia habitação social. Mudou bastante o perfil”, afirma.
Essa é a faceta menos conhecida de Pacífico, que ganhou notoriedade nas redes sociais por defender abertamente causas de impacto social e ambiental. Os números falam por si só: no LinkedIn, 445 mil o seguem e outros 136,4 mil assinam sua newsletter chamada Liderança e Impacto; e, no Instagram, 221 mil.
Engenheiro de formação pela Mauá e com 25 anos de experiência no mercado financeiro, Pacífico fundou, em 2009, uma securitizadora imobiliária, a GaiaSec, que foi se desdobrando em outros negócios de securitização de títulos e gestão de créditos – fazendo negócios convencionais, ainda que dentro da ideia de trabalhar de forma mais saudável em comparação com a média do mercado financeiro.
Há dez anos, Pacífico deu seus primeiros passos rumo a iniciativas de impacto social, ao criar uma ONG focada em educação, a Gaia+.
Três anos depois, em 2017, o empresário fez seu primeiro investimento de impacto, na empresa Vivendas, que faz reformas de casas populares nas periferias dos grandes centros urbanos.
Pouco tempo depois, veio a aproximação com o MST. Em 2019, ele conheceu o líder do movimento, João Pedro Stedile, e resolveu visitar assentamentos para entender como funcionava, na prática, a dinâmica da agricultura familiar.
Há dois anos, Pacífico novamente surpreendeu o mercado ao vender sua securitizadora, a Planeta, uma das maiores do setor, que tinha presença em CRAs, à Opea, outro grande nome desse segmento, e resolveu transferir todos os recursos da transação para uma ONG de impacto, que ganhou o nome de Grupo Gaia.
Ele é frequentemente atacado por causa do MST e de seu posicionamento político progressista – já tirou fotos com nomes importantes da esquerda, como o presidente Lula e o deputado federal Guilherme Boulos –, mas Pacífico aprendeu a lidar com os críticos. Ele acredita que seu propósito é maior que a guerra ideológica nas redes.
“Eu tenho consciência da minha intenção de fazer impacto. Eu quero fazer impacto e me dedico a isso”, afirma.