Cerca de 8,4% da população brasileira com mais de dois anos de idade é formada por pessoas com deficiência. Isso, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), do IBGE, com números de 2019, equivale a um contingente de 17,3 milhões de brasileiros. Desse total, 2,9 milhões de pessoas residem em áreas rurais.
É um contingente enorme e, muitas vezes, invisível, até mesmo para empresas do agronegócio. São poucas as que possuem políticas de inclusão para essa população, principalmente no que diz respeito a autonomia para execução de tarefas no campo.
O Brasil repete o quadro de muitos outros países. Mas desde a segunda-feira, 14 de agosto, pode ter dado um passo no sentido de mudar essa situação. Por iniciativa da marca de máquinas agrícolas New Holland, do grupo CNH, passa a ser produzido em Curitiba o primeiro trator acessível, que já sai de fábrica com adaptações específicas para pessoas com deficiência nos membros inferiores.
O modelo TL5 Acessível é resultado de um projeto iniciado em 2019 e que contou com a parceria da empresa mobilidade inclusiva Elevittá, da Arteprima e do Senai de São Leopoldo (RS).
O desenvolvimento do produto contou também com a participação de um cliente New Holland que é cadeirante. O trator vem equipado com uma plataforma de elevação, que permite ao usuário entrar e sair da cabine de forma independente, utilizando um joystick para direcionar o aparelho. Além disso, os comandos da máquina foram adaptados para facilitar as operações durante o trabalho.
“As pessoas com deficiência, inclusive as que vivem e trabalham no campo, querem ter autonomia para poder realizar suas atividades por conta própria”, afirmou Eduardo Kerbauy, vice-presidente da New Holland Agriculture para a América Latina, durante a coletiva de lançamento. “Essa, aliás, é a principal premissa da inclusão, já que essas pessoas possuem inúmeras habilidades e capacidades”.
Não existem dados sobre número desses equipamentos, algumas vezes produzidos à revelia de normas técnicas. “O que temos visto é que os clientes que precisam de adaptação específica para alguma máquina, o fazem em empresas terceirizadas, especializadas nesse tipo de serviço”, explica o coordenador de vendas e marketing da fabricante de máquinas e implementos da Agritech, César Roberto Guimarães de Oliveira.
A New Holland, por exemplo, vai disponibilizar aos produtores a opção de adquirir apenas a plataforma de elevação para adaptação em tratores modelo TL5 fabricados a partir de 2019.
No Brasil, a maior parte das fabricantes de máquinas e implementos agrícolas instaladas no país ainda não possui tecnologias voltadas a esse público. Procuradas, John Deere, Kuhn, LS Tractor e Agco – dona das marcas Fendt, Valtra e Massey Ferguson -, afirmaram por meio de assessoria não terem produtos específicos para pessoas com deficiência.
Para a engenheira agrônoma e consultora de inclusão no setor agro Ana Paula Porfírio, a falta de equipamentos adaptados se deve principalmente à "percepção capacitista" da sociedade, que parte da ideia de que a pessoa com deficiência não tem condições de realizar algum trabalho.
“Isso se agrava ainda mais no campo, um setor desconhecido para a maioria das pessoas, já que 84% da população brasileira vive em áreas urbanas”, pondera a especialista.
Isso se reflete nas oportunidades de trabalho. Dados do IBGE de 2022 apontam que elas são substancialmente menores para pessoas com deficiência são menores.
Enquanto a participação de pessoas sem deficiência na força de trabalho é de 66,4%, a participação de pessoas com deficiência é de apenas 29,2%. Não há dados específicos para a área rural.
Programas de inclusão
“De forma geral, as grandes fabricantes de máquinas e equipamentos estão focadas em segurança e prevenção de acidentes e não parecem ter muito interesse em produzir equipamentos acessíveis para pessoas com deficiência”, pondera Paul Jones, gerente do National AgrAbility, programa promove a acessibilidade no campo para produtores nos Estados Unidos.
Em entrevista ao AgFeed, ele explica que pessoas com deficiência representam uma pequena parcela de clientes e acaba não sendo economicamente atraente para as empresas criar produtos exclusivamente para eles.
O programa Agrability tenta preencher essa lacuna. Presente em 21 estados norte-americanos, atende cerca de 1.400 clientes ao ano, incluindo veteranos de guerra, produtores e trabalhadores rurais.
O projeto nasceu nos anos 90 nos Estados Unidos e tem o objetivo de melhorar a qualidade de vida e condições de trabalho de produtores e trabalhadores do campo com deficiência ou problemas de saúde que impactem a rotina.
Anualmente, o programa recebe aporte do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), de US$ 4,2 milhões, um valor ainda pequeno diante do poderio do agronegócio americano.
Entre as ações desenvolvidas, estão a assistência direta aos produtores, com avaliação das necessidades específicas, consultoria sobre tecnologias assistivas disponíveis, além de ações de networking, educação e marketing, que auxiliam na inclusão dos produtores e melhores condições de trabalho.
O projeto é referência para outros países. Jones revela que no continente africano já existe uma iniciativa similar em desenvolvimento.
Para ele, um dos principais desafios para ampliar o acesso a essas soluções passa pela questão de recursos. “O financiamento é sempre um desafio, e é difícil tornar as tecnologias assistivas acessíveis economicamente para as pessoas, especialmente nos países em desenvolvimento”, pondera Jones.
Segundo a consultora Ana Paula, nos Estados Unidos os programas de apoio aos produtores rurais já estão mais desenvolvidos.
“Lá é possível ver tratores com adaptações com certa ‘facilidade’”, afirma. No entanto, ela destaca que no Brasil, o cenário agrícola é diferente.
“Aqui, temos a maior parte de unidades produtivas (76,8%) na agricultura familiar que ocupam 23% das áreas. As demandas são diferentes das grandes unidades de produção, mais extensionistas”, pondera.
Outros países como Canadá, Noruega e Austrália desenvolvem projetos que promovem a inclusão dos trabalhadores com deficiência por meio de soluções personalizadas.
No Reino Unido, o programa Disability Inovation, que atua em diversas frentes, está desenvolvendo um projeto com foco nas pessoas com deficiência no setor agrícola.
“O mundo da deficiência é tão grande e diverso quanto o mundo agro”, avalia Ana Paula. “Ao cruzarmos os dois, temos infinitas possibilidades e, consequentemente, ajustes que precisam ser feitos para correta inserção do trabalhador com alguma deficiência”.
Para a consultora, esse processo passa necessariamente pela educação inclusiva. “Mostrar que inserção pode acontecer, que todos podem e têm o direito de trabalhar como cidadãos que são, ainda é algo que precisa ser lembrado”, conclui.