O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) parece mesmo que não quer deixar o ano de 2024 terminar sem cumprir entregas de iniciativas importantes e que vinham sendo demandadas pelos produtores e indústria.
Primeiro, a pasta lançou, na terça-feira, 17 de dezembro, o sistema de rastreabilidade individual da pecuária, que vinha sendo discutido desde maio. Os pecuaristas serão obrigados a adotá-lo, mas a implementação vai acontecer de forma gradual ao longo dos próximos oito anos. A ideia é que, a partir de 2033, todo o rebanho brasileiro esteja sendo rastreado.
Nesta quinta-feira, dia 19 de dezembro, foi a vez de um outro lançamento: a plataforma on-line Agro Brasil+Sustentável, ferramenta digital que vai ajudar os produtores rurais a comprovarem que suas atividades estão livres de desmatamento e também atestar a qualidade da produção brasileira ao mercado externo.
A ferramenta foi desenvolvida em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Mas, apesar da relevância para o setor, o evento para o lançamento ocorreu sem alarde, para um público restrito no Mapa, em Brasília, sem transmissão ao vivo na televisão – e ainda sequer é possível encontrar, no site da pasta, um link para acessar a ferramenta digital.
O que se sabe, por ora, é que a ferramenta digital não está trazendo um ponto crucial para os produtores: a possibilidade de que sua produção seja rastreada – pauta que foi bastante discutida pelo setor ao longo deste ano pela iminência de entrada em vigor da lei antidesmatamento da União Europeia, a EUDR, que exige a rastreabilidade de produtos como café, soja, cacau e carne bovina, e cuja vigência foi adiada em um ano.
Segundo relatou Marina Guyot, gerente de Políticas Públicas do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), a ferramenta foi concebida para trazer três módulos: conformidade, boas práticas e rastreabilidade.
Os dois primeiros “pilares” estão sendo contemplados pela plataforma que está sendo lançada. Já o terceiro, por ora, fica de fora.
Por enquanto, na ferramenta digital, ainda segundo Guyot, o governo vai cruzar o documento informado pelo produtor – o Cadastro Ambiental Rural (CAR) – com bases oficiais, que são listas de embargo ambiental, trabalho análogo à escravidão, sobreposição de áreas de unidades de conservação e de áreas indígenas.
Além disso, o produtor também poderá inserir certificados públicos de boas práticas agrícolas e de produto e, dessa forma, poderá ter acesso a descontos previstos pelo Plano Safra.
Lançado em julho deste ano, o plano previa um desconto, a partir do dia 1º de janeiro de 2025, para produtores que adotarem boas práticas ambientais.
O governo prometeu dar desconto de pelo menos 0,5 ponto percentual nas taxas de financiamento de custeio que tivessem produção de orgânicos certificada pelo Mapa, de boas práticas agrícolas ou de produção integrada, e de mais de 0,5 ponto percentual se a propriedade já tivesse tido seu CAR analisado.
Só que esse desconto dependia da verificação dos dados na plataforma que está sendo lançada somente no final do ano.
“O ministério está lançando a plataforma agora porque precisa cumprir o Plano Safra”, diz uma fonte.
O lado que ficou pendente é o módulo de rastreabilidade, em que a plataforma poderá avaliar dados da Guia de Trânsito Animal (GTA), no novíssimo sistema de rastreabilidade individual da pecuária, ou em notas fiscais.
“Acho que o grande mérito da plataforma é ter uma ferramenta pública, que os produtores podem acessar para verificar várias questões. Essas informações já eram públicas, mas para você poder avaliar uma propriedade, tinha que ficar caçando esses dados em vários lugares e normalmente o produtor tinha que contratar alguém para fazer isso”, afirma Guyot.
O próprio secretário de Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação, Pedro Alves Corrêa Neto, admitiu, durante fala no lançamento da plataforma, que a ferramenta digital está sendo lançada de forma “evolutiva”.
“(A plataforma) vai estar em evolução de acordo com o avanço, de acordo com as transições das exigências mercadológicas, tanto aqui no mercado nacional quanto nos mercados internacionais”, disse Neto na audiência de apresentação da plataforma, realizada no Ministério da Agricultura, em Brasília.
Plataforma quase não saiu
Além de estar lançada de forma incompleta, a plataforma ficou mais de um ano no papel.
No começo do ano, o Mapa chegou a cravar que a ferramenta iria ser lançada em julho passado, mas isso não aconteceu. Na mesma ocasião, a antiga secretária de Inovação, Renata Miranda, deixou o cargo, alegando motivos pessoais.
Com a saída de Miranda e a frustração no lançamento da ferramenta, produtores e entidades representativas ficaram com medo de a plataforma nunca sair do papel.
Houve, então, uma dança nas cadeiras no comando da secretaria de Inovação. Inicialmente, quem iria assumir o cargo deixado por Miranda era o engenheiro agrônomo Eduardo Bastos, que foi diretor de sustentabilidade da Bayer para a América Latina e CEO da MyCarbon.
Bastos chegou a ser indicado pelo ministro Carlos Fávaro, mas seu nome teria sido barrado por pressão do PT, que via com reservas a proximidade do agrônomo com a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).
No lugar de Bastos, quem assumiu o cargo foi Pedro Neto, que ocupava o posto de secretário-adjunto de Miranda.
A partir da entrada de Neto, houve avanços no desenvolvimento da plataforma, ainda que com algumas dificuldades pelo caminho. O fator político influenciou no desenvolvimento de ferramenta.
“O timing não era propício, teve a eleição municipal, uma sensação de que não se queria causar problemas com os produtores”, afirmou outra fonte.
“A plataforma parecia que não ia sair e só andou com um movimento da indústria que, com a aproximação da EUDR, disse: ‘ou sai, ou não sai’. Aí, entrou uma negociação com a CNA e produtores”, diz essa mesma fonte.
Em agosto, uma versão preliminar da plataforma desagradou uma importante entidade que representa a indústria, segundo outra fonte.
A reportagem do AgFeed teve acesso a telas em que era possível ver que o sistema desenvolvido pelo Serpro tinha um layout semelhante ao sistema Gov.br e que avaliava seis critérios: conformidade fundiária – dados cadastrais e geoespaciais –; trabalho com condição análoga à escravidão, sobreposição com áreas indígenas; e sobreposição com terras quilombolas.
O sistema apresentava falhas nesse período de testes. Para que a propriedade fosse considerado em conformidade ambiental, o produtor só precisaria informar que sua propriedade possuía o CAR, o que não garante, por si só, que a propriedade esteja realmente adequada à legislação brasileira.
O CAR é um nó que a plataforma não conseguiu desatar. Criado pelo Código Florestal de 2012, trata-se de um documento obrigatório para todas as propriedades rurais e que faz a integração das informações ambientais das fazendas com os títulos de terras.
Mas o que era uma inovação quando a legislação florestal foi lançada, passou a ser um problema com o decorrer do tempo.
Isso acontece porque o CAR é um documento autodeclarado pelos produtores rurais que precisa ser verificado pelos Estados, que não possuem equipes suficientes para a análise dos dados que recebem.
Até o momento, apenas 75,3 mil propriedades haviam tido seu registro validado até julho passado, segundo levantamento feito pelo Imaflora para o AgFeed.
Esse montante corresponde a apenas 1% das 7,4 milhões de propriedades cadastradas.
Para Marina Guyot, do Imaflora, faltou à plataforma apresentar as soluções para o produtor que não está em conformidade com a legislação socioambiental.
“Para que a adesão seja relevante em termos de propriedades que vão usar de fato essa plataforma, vai depender de incentivos e também acredito que incluir na plataforma não apenas a fotografia de como a propriedade está, mas, no caso de eventuais não conformidades, como o produtor pode resolvê-las.”