Nada mais poderoso do que a realidade. Pouco mais de dois meses depois que a Conferência da ONU sobre o Clima lançou seus sonhos de transição forçada para o abandono de combustíveis fósseis em Dubai (!), os agricultores alemães paralisaram a quarta maior potência econômica do mundo para despertar os sonhadores.

Durante mais de dez dias, os alemães bloquearam o país, literalmente, fechando estradas e cidades e ocupando as principais manchetes.

Quando algo acontece na Alemanha é melhor prestar dupla atenção. Ali a história acontece e as consequências vão muito além de suas fronteiras. Para o bem a para o mal.

Não se trata apenas de um setor econômico lutando para manter subsídios ao combustível e isenções fiscais sobre veículos automotores. Há um desconforto que vem crescendo há décadas. E tudo indica que ainda não foi compreendido totalmente pelas lideranças políticas europeias.

O governo alemão teve que fazer cortes orçamentários de 17 bilhões de euros no final do ano passado, depois que o Tribunal Constitucional considerou o orçamento apresentado pelo governo de Olaf Scholz como inconstitucional.

Abalada pelas consequências da pandemia, pela crise energética resultante do conflito na Ucrânia e por demandas crescentes de infraestrutura e defesa, a economia alemã achou que podia tirar um pouco mais dos agricultores.

Afinal de contas, os recursos para políticas de combate às mudanças climáticas deveriam permanecer intocados. Deu no que deu.

Os agricultores alemães foram apenas os arautos de um sentimento que já está espraiado por boa parte das 26 nações europeias.

As políticas ambientais e de emissão zero são preocupações restritas a uma elite rica e abastada que é contra tudo aquilo que importa para as pessoas comuns: comida e energia acessíveis.

Os produtores agrícolas alemães e europeus se sentem pressionados por uma agenda ambiental irracional. Sejam os holandeses punidos pelo uso de fertilizantes nitrogenados, os irlandeses obrigados a abater 200 mil cabeças de gado para reduzir gases de efeito estufa, franceses e austríacos pressionados a reduzir área agrícola para cumprir a lei de “restauração da natureza”.

Preocupações com a importação de produtos agrícolas mais baratos da Ucrânia para responder a causas humanitárias somam-se à indignação dos agricultores.

O ministro da agricultura alemão, Cem Özdemir, membro do Partido Verde, chegou a propor a introdução de uma taxa sobre a carne e produtos de origem animal, considerando que isso poderia beneficiar os agricultores para a conversão de estábulos favoráveis aos animais.

Não percebeu, assim como boa parte da classe política, que a questão está além da combinação de medidas ambientais e manutenção da austeridade. Cortar os subsídios do diesel e aumentar o imposto sobre emissões de CO2 é a gota d’agua para uma maneira de fazer política que está desconectada da realidade.

Se cada um tem que fazer a sua parte para contribuir para o equilíbrio fiscal, que seja agora a vez dos “Fundos Verdes” e que fique claro que as metas climáticas de 2030 não poderão ser alcançadas.

A combinação política alemã é formada por dois partidos de centro-esquerda na coalizão política alemã, os verdes e os social-democratas, além um partido liberal pro-negócios, os liberais.

Estão lutando para conciliar múltiplas crises. Têm de conciliar objetivos audaciosos e divergentes. Transformar a maior economia da Europa em um ambiente mais moderno e tecnológico, com ganhos de produtividade e agilidade, cumprindo a tradição de austeridade e, ao mesmo tempo, cumprir metas climáticas, investir em alternativas energéticas e infraestrutura que demanda mais investimentos.

Aumentar custos não alinha com ganho de competitividade e redução de burocracia. Aumentar gastos tem limite para suportar uma inflação inédita para padrões alemães no pós-guerra.

A questão é política. E as eleições em três estados da federação alemã em 2024 vão estabelecer um novo patamar de representação regional com reflexos na agenda nacional.

Turíngia, Saxônia e Saxônia-Anhalt são regiões em que a insatisfação com o governo federal é grande. A oposição de centro-direita e a direita do espectro alemão, o Partido Democrata Cristão e o Alternativa para a Alemanha (AfD), respectivamente, têm chances de vencer.

Em regiões como Baviera e Hesse, que contam juntas com um quarto do eleitorado alemão, o AfD atingiu marcas históricas e ficou em segundo lugar nas eleições regionais da semana passada.

A perda de popularidade do governo federal é maior no Partido Verde, que acumulou erros históricos como a política antinuclear que tanto defendeu e que após a crise do conflito Rússia-Ucrania colocou a Alemanha a queimar carvão para aquecer as residências e reduzir a dependência do gás russo na sua matriz energética.

É o Partido Verde que tem sustentado a agenda do Green Deal europeu, repleta de políticas agrícolas e energéticas absolutamente desconectadas da realidade dos cidadãos e que ajudam a explicar as manifestações dos produtores rurais do país.

Muitas vezes ridicularizados pela sua política de discurso único anti-imigração, os partidos de direita europeus ganharam o tema do aumento do custo de vida como combinação ideal para suas ambições eleitorais.

Na Holanda, Geert Wilders ganhou o governo em novembro de 2023, alertando os burocratas europeus de Bruxelas de que os ventos estavam mudando. Na Espanha, um governo social-democrata busca se sustentar com aliados que promoveram plebiscito inconstitucional na Catalunha, gerando desgaste irreversível.

Na Itália, Giorgia Meloni ascendeu ao poder após o desgaste da agenda de gastos excessivos da esquerda italiana. Na Hungria e na Polônia, os presidentes já descolaram da burocracia ambiental europeia há alguns anos.

Em junho haverá eleições para o Parlamento Europeu e em setembro mais três regiões da Alemanha escolhem seus dirigentes.

Os resultados das paralisações dos produtores rurais alemães ainda são incertos. Mas não há dúvida de que a agenda ambiental europeia não será mais a mesma.