Quem acompanha o universo das tradings de soja e milho sabe que é na logística que está o maior desafio e também a maior oportunidade de tentar uma diferenciação em relação aos concorrentes.
Com volumes exportados cada vez maiores, em fronteiras agrícolas distantes, escoar a produção para as rotas que levam aos portos, com custos adequados, é a verdadeira batalha que as grandes empresas enfrentam no Brasil.
Um dos nós está no transporte rodoviário que, especialmente no pico da safra, muitas vezes leva o preço do frete a patamares muito elevados, acima do que as multinacionais poderiam prever e derretendo a margem das empresas.
Pensando em resolver pelo menos parte deste problema, as empresas Amaggi, ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus (LDC) anunciaram no início do ano passado a criação de uma joint venture para atuar nesse modal.
A ideia teria surgido inicialmente entre Amaggi e Cargill, mas depois foi abraçada pelas demais concorrentes, que preferiram não ficar de fora, correndo o risco de perder “na vírgula” algum diferencial na logística.
O negócio recebeu a aprovação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em setembro do ano passado.
Ao longo do primeiro semestre deste ano o projeto vinha avançando, “com previsão de sair no fim de setembro”, disseram fontes ao AgFeed.
Pouco tempo após a compra de um lote de caminhões B100 (que utilizam 100% de biodiesel) por parte da Amaggi, por exemplo, junto a uma grande montadora, executivos envolvidos já cotavam uma nova leva que, desta vez, seria destinada à joint venture de transportes.
O AgFeed apurou que o nome da empresa já estava praticamente definido: seria chamada de Movere. A expectativa era contratar 1 mil motoristas e adquirir quantidade semelhante de caminhões.
Fontes envolvidas diretamente na operação esperavam que o lançamento ocorresse no final de de 2024, em função de já ter se passado um ano da aprovação do Cade.
Uma reportagem sobre o tema publicada pelo jornal Valor Econômico sinalizou uma estimativa, por parte das empresas, de transportar 3% do volume de carga total das cinco tradings por meio da joint venture.
O projeto foi inspirado em uma outra iniciativa conjunta das tradings em relação à logística, que vem sendo bem sucedida: a logfintech Strada. Em reportagem recente, o AgFeed mostrou que a empresa deve transacionar na sua plataforma digital um total de R$ 10 bilhões em fretes, sendo que 70% disso são demandas das sócias ADM, Amaggi, Cargill e Dreyfus.
Depois de várias negociações e aprovações internas em cada uma das empresas, a ordem neste segundo semestre foi “desmobilizar” a Movere. Até mesmo o contrato de consultores envolvidos foi encerrado por ora, disseram fontes, “com previsão de recontratação futura”.
Procuradas pelo AgFeed, as tradings se manifestaram por meio de nota.
“Amaggi, Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company (LDC) confirmam que fazem parte do projeto de uma joint venture que avalia formas de apoiar o transporte de grãos e insumos das empresas que a integram. Neste momento, o projeto está sendo melhor avaliado diante de alterações significativas no mercado de commodities”, diz o texto.
A “tempestade do take or pay”
Fontes ligadas às tradings dizem que a união “estrategicamente faz sentido”, mas que a opção de pausar o projeto está relacionada à decisão das empresas de ter foco “na resolução dos problemas atuais”.
O ano de 2024 foi marcado por fortes prejuízos para as companhias em função da queda no preço das commodities e dos contratos chamados de take or pay, que são firmados especialmente com empresas de logística como Rumo e VLI.
Na prática, a trading contrata um volume para movimentar na ferrovia por ano, de produtos como soja, milho e farelo, por exemplo, ficando com a obrigação de realmente transportar (take) ou pagar por aquilo que não transportou (pay).
No mercado do milho este ano, o Brasil deve exportar cerca de 15 milhões de toneladas a menos, na comparação com 2023. O mercado interno ficou mais atrativo para os produtores. Nesse cenário, sobraria o pay para muitos agentes de mercado.
O problema também ocorre quando a conta não fecha. Quando o preço para originar (comprar do agricultor) é incompatível com o preço de exportação.
“Acabam fazendo a conta de onde vão perder menos”, disse uma fonte.
Assim, tradings tem operado no que chamam de “contramargem”, ou seja, no prejuízo.
Esse tipo de contrato também é usado para armazéns e portos. Cada trading usa sua capacidade própria, mas o que quiser fazer além daquele volume, acaba contratando de terceiros.
Um ex-trader disse ao AgFeed que costumava pagar 7 dólares por tonelada para take or pay no porto. “Se para originar a conta tivesse em 5 dólares negativos, fazia essa opção, afinal, perderia menos”.
No frete ferroviário de Mato Grosso ao porto de Santos, por exemplo, o take or pay estaria ao redor de US$ 35 por tonelada.
Cada contrato das grandes tradings tem volumes de cerca de 4 milhões de toneladas, dizem as fontes. Neste caso, o prejuízo chegaria a US$ 120 milhões por contrato, o que pelo câmbio atual, daria R$ 692 milhões.
No caso da soja, o Brasil deve exportar volume próximo de 100 milhões de toneladas em 2024.
Em entrevista recente ao AgFeed, uma única empresa, a Rumo Logística informou ter transportado 32 milhões de toneladas de soja, milho e farelo em 2023.
A negociação varia caso a caso, mas a estimativa é de pelo menos 80% dos contratos por ferrovias envolvam o take or pay.
O prejuízo da casa do bilhão em função disso não é a única preocupação das tradings do momento. Empresas também vêm fazendo os cálculos sobre os reflexos das leis aprovadas contra a moratória da soja, que retiram incentivos para quem, como elas, é signatário do acordo antidesmatamento.
Com tantos problemas urgentes pela frente, o futuro da Movere ainda é incerto. Um alto executivo de uma das maiores tradings envolvidas acredita que vai sair, mas possivelmente “só em 2026”.
Já outros entendem que o acordo “é um tiro no pé”, com maior benefício para quem também atua na produção dos grãos, como é o caso da Amaggi. Além disso, trabalhar com caminhões seria um trabalho muito complexo e específico, algo não recomendado para ser administrado pelas tradings.
O AgFeed apurou que desde a aprovação, em setembro de 23, nenhum novo pedido foi encaminhado ao Cade em relação ao assunto. Não há prazo de validade para que haja a consumação de atos de concentração autorizados pelo órgão.
Porém, o Cade esclareceu, via assessoria de imprensa que, “dependendo do tempo para a consumação, as condições de concorrência podem se modificar, seja pela entrada de novos atos de concentração das partes ou por outros fatores de mercado, o que pode exigir uma nova análise”.