Quando executivos de gigantes globais de tradings de grãos se unem e resolvem partir para uma nova empreitada, o que seria? Quem apostou em algo relacionado ao mundo das commodities tradicionais, por exemplo, errou.
A história começa em 2020, quando o ex-diretor da Louis Dreyfus, Luís Barbieri, o fundador da NovaAgri, Marcus Menoita, e Leandro Almeida, que também foi executivo da trading, decidiram se dedicar ao mercado de proteínas orgânicas, mais especificamente, aos ovos – e assim criaram a Raiar Orgânicos, com a ajuda de 31 investidores.
O negócio mostra que tem muito potencial para crescer, não apenas em volumes e portfólio, mas na possibilidade de criar “um novo sistema, um modelo de transição para a produção brasileira de proteínas" – o que inclui a soja e o milho.
O que uniu os três sócios foi uma espécie de "inconformismo” com o modelo de produção de alimentos, que começava a dar sinais de esgotamento, e com a visão de que novas empresas estavam surgindo para atender a demanda diferente que começava a aparecer por parte de produtores e consumidores.
"Acredito que 100% orgânico é uma transição possível e viável. É impossível que ela ocorra por decreto. Mas a evolução da tecnologia está indo por este caminho. Há quatro anos, quando pensamos em criar a empresa, era mais difícil que hoje. E daqui a 4 anos vai ser muito mais fácil do que hoje. Eu acredito muito que o futuro da agricultura é regenerativo orgânico", afirmou Luís Barbieri, ao receber o AgFeed para uma longa conversa, no escritório da empresa, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo.
Até agora já foram investidos R$ 100 milhões pelo grupo, desde o começo, quando foi comprada uma fazenda em Avaré, até os últimos aportes para aumentar a produção.
Os resultados já estão aparecendo. O faturamento da empresa deve chegar a R$ 25 milhões este ano – os primeiros produtos chegaram as gôndolas em maio de 2022.
Já em 2024, a Raiar passa a ser geradora de caixa e projeta uma receita de R$ 53 milhões, principalmente pelo fato de ter dobrado o número de aves alojadas – este ano chegou a 160 mil galinhas.
Na base da tese da Raiar está o convite à reflexão sobre três aspectos principais: o aquecimento global e a necessidade de avançar com uma agricultura de baixo carbono, o uso indiscriminado de antibióticos na produção animal, que leva ao surgimento de super bactérias, como afirmou Barbieri, e a utilização excessiva de agrotóxicos, com o avanço da contaminação dos recursos naturais e, principalmente, "por exaurir a vida do solo, colocando o risco o sistema em si, à medida que se faz uma agricultura de maior risco climático".
"Essas três coisas são norteadoras do nosso trabalho. Enxergamos isso como um dos motores para transformar a cadeia das proteínas", explicou.
O modelo "regenerativo orgânico"
Na visão de Barbieri, o modelo criado pela Revolução Verde, que trouxe saltos de produtividade, "teve até mais pontos fortes do que fracos”, mas foi baseado no elevado uso de defensivos e fertilizantes químicos, por exemplo, o que "funcionou até aqui".
O empresário afirma que a situação começa a se inverter porque a decisão "de controlar a natureza e não gerir" está ficando cada vez mais cara e difícil de ser manejada.
Agora o caminho, não para uma revolução, mas sim para uma “evolução", como ele mesmo ressalta, é buscar as soluções na própria natureza.
"É substituir o agrotóxico por insumo biológico, é substituir o fertilizante químico pelo mineral e pensar em plantas de cobertura, em rotação mais diversa para o solo. Não é uma volta ao passado. O orgânico é uma volta ao futuro", destacou, à medida que defende o uso destas soluções da natureza aliadas às novas tecnologias como a inteligência artificial e a robótica.
"Não é uma volta ao passado. O orgânico é uma volta ao futuro"
"Nós já entendemos que é importante preservar a floresta para o sistema funcionar, agora precisamos entender que é preciso preservar o solo, e a agricultura regenerativa orgânica é o melhor jeito para preservar o solo, de uma forma eficiente e racional, mas é uma longa caminhada", disse ele.
Outro ponto é que neste modelo o solo vai fixando raízes e sequestra de carbono. "A agricultura pode e deve ser uma solução não só de emissão zero mas ser positiva, reter carbono no solo, pra isso precisa do solo vivo. As pessoas estão chamando isso de agricultura regenerativa, e o orgânico fala que é o modelo dela, porque é regenerativo. Tem uma disputa nessa taxonomia, mas tudo vai na mesma direção".
"Fazenda Modelo” para expandir a transformação
Por meio da Folio, uma rede de produtores de grãos orgânicos e disseminação de conhecimento, a Raiar Orgânicos fez um acordo de cooperação técnica com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) que poderá ajudar a empresa a “dar escala” ao modelo que defende.
"O nosso papel na Raiar é ajudar na transformação dessa cadeia dos grãos. Queremos mostrar que é possível produzir grãos de outra maneira e tentar induzir e apoiar que esse processo se acelere, junto com cadeia de insumos", explicou Luís Barbieri.
A UFSCar recebeu uma fazenda por meio de uma doação, em 2010, feita pelo escritor Raduan Nassar. Na época, o artista deixou claro que estava doando a Fazenda Lagoa do Sino, que tinha 643 hectares, para que ali fosse desenvolvido um amplo projeto de agricultura sustentável, para promover o desenvolvimento regional.
O plano da Raiar de "transformar a agricultura” tinha tudo a ver com essa missão e o primeiro passo foi dado nesta safra. Foram plantados 4 hectares de milho totalmente orgânico na fazenda – a área cultivada com grãos na propriedade da UFSCar é de 400 hectares, que geram receita para a universidade.
No mesmo local, empresas de biológicos como Vittia e Solubio, segundo Barbieri, também estão fazendo campos experimentais em cerca de 30 hectares, na parceria com a universidade.
"A academia também vinha se distanciando do dia a dia do produtor, por isso pensamos em desenhar juntos este modelo de transição, mas não fazer numa escala de jardim, é preciso fazer na escala da vida real do produtor”, explicou.
"A academia vinha se distanciando do dia a dia do produtor"
A expectativa é de que o projeto “ganhe corpo”, possivelmente com novos parceiros – um dos prováveis é a Embrapa – no plano que deve ser finalizado e detalhado nos primeiro semestre de 2024.
"O objetivo é transformar a fazenda em um modelo para a transição dos grãos no Brasil, vamos começar a medir e entender qual é o melhor caminho para subir essa escala", afirmou Barbieri. Ele se refere à adoção gradual de práticas que vão seguindo critérios do que se entende por "regenerativo" até viabilizar um modelo "100% orgânico".
"Se tentasse fazer a mudança nos 400 hectares plantados de uma só vez seria muito risco, por isso haverá uma redução gradual no uso de químicos, até ir chegando próximo do regenerativo orgânico, quem sabe em 5 anos", disse o empresário.
Plano de crescimento
Na conversa com o AgFeed, ao contar a história da Raiar, Luís Barbieri deixou claro: "Decidimos começar pelo ovo, estamos só começando”.
O plano, portanto, é não apenas ampliar a produção e comercialização de ovos orgânicos, mas também atuar nas proteínas orgânicas, como um todo, o que já começa pelos grãos.
Hoje a Raiar conta com quase mil pontos de venda, em diversos estados. O plano é dobrar novamente o alojamento de aves no ano que vem, chegando a 320 mil galinhas. "Nos próximos 5 a 7 anos, chegaremos a 2 milhões de galinhas”, disse o executivo.
Nos R$ 100 milhões investidos até agora, as prioridades foram os setores de ração, a parte que embala os ovos, a recria e um aviário de produção.
"O começo e o fim do processo estão prontos. Agora o investimento será para multiplicar os aviários e assim produzir mais galinhas", ressaltou.
Para o biênio 2023/2024 serão investidos R$ 30 milhões, segundo a empresa. A meta, porém, é alcançar R$ 200 milhões no total até 2026.
Os recursos para seguir crescendo a Raiar vem buscando por meio de uma nova rodada de captação que será concluída até o fim de dezembro. "Está bem encaminhada", prevê Barbieri.
A expectativa é que entre 5 e 7 investidores se somem aos 31 que já apostaram na empresa, com a captação de um valor próximo de R$ 50 milhões.
A empresa já produz ração orgânica, fornecendo para outros produtores de proteína animal. "Queremos crescer essa atividade, é importante pra catalisar o setor, clientes pequenos de ovos, mas nossa ideia é ampliar", disse. No próximo ano o consumo de soja e milho da Raiar é estimado em 10 mil toneladas.
Outro passo importante de expansão será o início do trabalho com produtores integrados, um modelo comum entre as grandes empresas de aves e suínos. Segundo Barbieri, os estudos vão ocorrer no ano que vem e a primeira operação com integrados deve ser feita em 2025. Atualmente, toda a produção de ovos está no aviário próprio.
"Foram dois anos e meio cuidando das aves, desenvolvendo um modelo de gestão para a criação de galinhas soltas, trazendo tecnologias únicas para o setor. Com muito dado, governança e gestão, acreditamos que estamos construindo um modelo produtivo que poderá ser reproduzido com integrados”, descreveu o sócio da empresa.
Entre as tecnologias empregadas está a chamada Jump Start, que veio da Holanda, em que as galinhas se movimentam, o que ajuda na longevidade das aves e na maior produção de ovos.
O modelo de integração também é inspirado no maior produtor de ovo orgânico dos Estados Unidos, uma empresa listada, chamada Vital Farms, que gere milhões de galinhas, todos elas em propriedades de produtores integrados.
Barbieri diz que a empresa prioriza, como qualquer outra, criar um negócio interessante do ponto de vista econômico, que tenha rentabilidade para seguir perpetuando seu crescimento. Porém entende que, ao mesmo tempo, estão "se vendo como motor dessa transformação da agricultura no Brasil".
"Somos o catalisador desse movimento, mostrando exemplos, isso é importante porque potencializa inclusive nosso tamanho e capacidade de crescimento. Estamos construindo uma referencia na produção de proteínas orgânicas", diz.
Confira outros destaques da entrevista de Luís Barbieri ao AgFeed.
Régua da agricultura regenerativa
"Hoje regenerativo, sustentável e lindo, todo mundo se acha um pouco", brincou Luís Barbieri, ao comentar a onda de anúncios de diferentes programas de agricultura regenerativa.
O tema, no entanto, é tratado muito a sério. Ele defende que seja estabelecida "uma régua”, um padrão regenerativo comum para o Brasil, com critérios claros que possam ser adotados pelos diferentes elos da cadeia.
"Temos que abrir essa chave binária, dizer que é ou não é regenerativo. A questão é construir o como é”, afirma.
"Se não fica cada um fazendo um regenerativo para chamar de seu. E o produtor terá que fazer 5 certificações diferentes?”, indaga.
"Ninguém parou para perguntar o que produtor rural acha. Na nossa cadeia o produtor rural ainda não é o ator principal"
Barbieri compara o sistema que precisa ser criado ao que se adota das auditorias contábeis. "Cada empresa contrata a auditoria de preferência, mas o padrão é o IFRS”.
"Ninguém parou para perguntar o que produtor rural acha. Na nossa cadeia o produtor rural ainda não é o ator principal. Essa é uma tese importante para nós, Nesse modelo de agricultura, o produtor rural é o centro do sistema, ele é o grande protagonista".
Na visão do empresário, se houvesse uma escala de 4 níveis, por exemplo, como ocorre com geladeiras, no consumo de energia, ficaria mais fácil para cada empresa estabelecer suas metas e também poderia viabilizar políticas públicas, com juros mais baixos, algo mais viável para que os bancos pudessem operar.
"Alcóolicos Anônimos” do agro
A Raiar Orgânicos foi idealizadora da rede Folio, que ajuda produtores no processo de “desintoxicação", como conta Barbieri, para que façam a transição para o novo modelo.
"O inicio da transição é um processo doloroso, a fazenda está acostumada com aquele modelo, é como processo de mudança de saúde, quando a pessoa quer fazer dieta, parar de fumar, até aquele sistema entrar em equilíbrio as vezes demora 3 anos. E os dois primeiros anos são os mais difíceis", afirma.
"É quase um AA (alcóolatras anônimos) da agricultura, para mostrar que dá para chegar lá"
"Muita gente que entra na agricultura orgânica desanima porque não consegue chegar no lugar onde ela dá resultado. Por isso, dentro da Raiar, criamos a Folio, uma entidade para promover essa troca".
"É quase um AA (alcóolatras anônimos) da agricultura, para mostrar que dá para chegar lá. Os problemas são comuns, todo mundo cai na mesma armadilha, então ocorre essa troca, acreditamos muito nesse lugar do produtor rural como agente da transformação. De produtor para produtor, como no AA, é de igual para igual".
"Não adianta cada empresa achar que vai criar seu regenerativo e influenciar produtor, quem vai influenciar o produtor é o próprio produtor."
Participam da Folio atualmente cerca de 100 produtores. São trocas de experiências via digital, visitas a campo, e pelo menos um encontro presencial por ano.
Demanda crescente
"A demanda está vindo muito forte. O ovo orgânico no Brasil é 0,5% do total.
Nos EUA há 10 anos era assim. Hoje é perto de 7%. Achamos que poderia ser 2 e 3%
Estamos vendo acontecer na prática, dobrando numero de aves esse ano, no curto prazo não dá pra abrir novos pontos de venda porque não teria como atender, queremos fazer bem feito".
"A Raiar também vem desse lugar de trazer luz, de clarear, porque além do agricultor animais, é comunicar o consumidor de onde vem essa cadeia alimentar".
Custo x produtividade
Segundo a Raiar, o preço de venda do ovo orgânico é 30% mais caro do que o caipira para cobrir o custo de produção, já que os grãos orgânicos também são vendidos 30% acima do convencional.
"Mas o consumidor está disposto a pagar um pouco mais por um produto de qualidade", diz Barbieri. "Se é nicho, entendemos que 'ainda’ é. Porque se hoje é 0,5% do mercado, ainda vai ser 5%”.
Ao mesmo tempo, a Raiar garante que, em análise recente, provou que as aves de seu sistema produzem mais do que na gaiola. "Ela viveu mais tempo e o total de ovos uteis é maior desta ave bem tratada, do que na gaiola".
"As novas 'Syngentas, Bayers, Basfs' do século 21 podem ser brasileiras. Como sociedade precisamos entender esse valor"
O empresário diz que um dos motivos para o custo maior que a gaiola é o número muito maior de aves que são alojadas, mas acredita que os efeitos para a saúde, mais adiante, é o que vai fazer a diferença.
"Nosso trabalho é diuturnamente construir uma cadeia produtiva com tecnologia e eficiência para em que esse gap de custo entre os dois modelos diminua. Ele já diminuiu e vai diminuir ao longo do tempo. Na parte animal chegou lá, mas em grãos ainda precisa tempo. O ciclo é longo, tem um desafio de ritmo. Mas será uma evolução coletiva, feita em conjunto entre os produtores."
Pequenos produtores
"A transição da agricultura não pode deixar o pequeno produtor para trás. Pode ocorrer que os grandes que estão investindo nesta transformação avancem mais rápido. O pequeno é mais exposto aos impactos negativos da revolução verde, porque mora na fazenda, tem trator que não é cabinado, tem menos EPI... Muitos que têm contato conosco se queixam de casos leves de intoxicação que nem chegam a registrar. Por isso, temos projetos com pequenos produtores e também com alguns assentamentos de reforma agrária."
Brasil pode exportar o modelo
"Essa nova agricultura é um caminho muito relevante para a reindustrialização do Brasil, do mesmo jeito que está ocorrendo transição energética. Temos indústrias de bioinsumos, pesquisadores, capital intelectual. O Brasil tem todo o potencial para que as empresas de tecnologia para a agricultura do século 21 saiam daqui. Ou seja as novas 'Syngentas, Bayers, Basfs' do século 21 podem ser brasileiras. Como sociedade precisamos entender esse valor".
"Agregar valor para a agricultura não é processar soja. É como a gente constrói um novo modelo produtivo para as proteínas e exporta ele. Os insumos para a produção sem antibióticos, as indústrias brasileiras, de fertilizantes, de maquinário, de tecnologia, podem trazer a solução para a agricultura do mundo. Nem todo o pais importa comida, mas todo o pais produz comida e pode ser usuário da nossa tecnologia".