Um dia antes de ser coroado, o rei Charles III, teve um encontro com o presidente Lula. Na conversa rápida, pediu ao líder brasileiro que cuidasse bem da Amazônia.
Não foi uma fala oportunista ou isolada. A preocupação do monarca com temas ambientais vem desde meados dos anos 1970, quando assumiu o Ducado da Cornuália, no sudoeste do Reino Unido. Naquela época, o então jovem príncipe de Gales passou a se engajar pessoalmente em temas como desenvolvimento sustentável e agricultura orgânica, participando de eventos em vários países.
A paixão pela produção sustentável foi tamanha que em 1985 ele decidiu transformar uma de suas fazendas, a Home Farm, em produtora de orgânicos. Seu intuito era servir de exemplo aos produtores rurais da região e engajá-los nesse tipo de agricultura.
A iniciativa deu certo. Tanto que em 1990 ele criou a marca Duchy Organics, cujo primeiro produto lançado foi um biscoito de aveia.
Nascia ali um império de alimentos orgânicos líder do segmento no Reino Unido com mais de 300 produtos exportados para 30 países, incluindo Estados Unidos, Alemanha, Japão, Austrália e Canadá.
A companhia não divulga números recentes, mas em 2017 as vendas chegaram a 200 milhões de libras (R$ 1,2 bilhão), de acordo com reportagem publicada pela CNN no ano passado. Segundo informações da empresa, 100% dos lucros obtidos por Charles com o negócio são revertidos para projetos sociais.
Desde 2009, ano em que se associou à rede varejista Waitrose, a marca já reverteu mais de 30 milhões de libras (aproximadamente R$ 185,4 milhões) dos lucros em doações para os projetos filantrópicos do monarca.
Atualmente, a Duchy vende desde frutas, legumes, carnes, passando por biscoitos, doces, cafés, queijos, chás e cervejas. “A marca foi ganhando destaque ao longo dos anos em razão da excelente gestão empreendida por Charles, da escolha e excelência dos produtos oferecidos e da mudança de hábitos dos consumidores britânicos”, explica o doutor em comunicação e especialista em realeza britânica Renato de Almeida Vieira e Silva.
Inicialmente, a empresa comercializava itens que eram produzidos na fazenda de Charles e processados por indústrias parceiras. Os produtos eram disponibilizados em algumas lojas premium como a Harrods e a Fortnum & Mason, restritas a um público com alto poder aquisitivo.
Até que em 2009, depois de contrair algumas dívidas em uma tentativa frustrada de chegar aos Estados Unidos, a Duchy Organics foi ao mercado buscar parceiros para continuar crescendo. Assim, firmou uma parceria de exclusividade para a comercialização dos produtos nas lojas da Waitrose, cadeia varejista voltada para a classe média. Nascia assim a Waitrose Duchy Originals.
Vieira e Silva explica que a parceria com a Waitrose deu novo impulso à empresa ao aproximar a marca dos consumidores da classe média. Somente em 2022, 13,7 milhões de clientes fizeram compras nas lojas da marca, aumento de 7%.
Para atender à crescente demanda, foi preciso buscar produtores de orgânicos parceiros em todo Reino Unido e, eventualmente, em países vizinhos. De acordo com a Waitrose, o controle de qualidade dos produtos começa ainda no campo.
O leite da marca, por exemplo, vem de 26 fazendas na região de West Country, que fornecem alimentação orgânica para as vacas que pastam livremente “sempre que o clima permite”, segundo o site da própria companhia.
Além disso, a Duchy Originals investe em pesquisa e tecnologia para reduzir o impacto de suas embalagens. A bandeja de ovos, por exemplo é, segundo a marca, a primeira a ser produzida a partir de uma mistura de papel reciclável e palha de centeio, que utiliza 60% menos água e 50% menos papel que uma embalagem padrão. Já as embalagens para bananas podem ser compostadas em casa.
Assim, o que no início era um negócio que não dava grandes resultados passou a ser rentável e sustentável não só do ponto de vista agrícola, mas também midiático. “A produção orgânica e a proteção ambiental passaram a ser as bandeiras favoritas de Charles, já que também são temas que têm peso e influência na sociedade britânica e na mídia”, pondera o especialista.
Lucro e filantropia
De forma geral, o efeito “monarquia britânica” é benéfico para os negócios. Quanto maiores as vendas, maiores os lucros e maiores são as doações para os projetos filantrópicos da Prince of Wales Charitable Fund.
Na semana que antecedeu à coroação, por exemplo, um porta-voz da Waitrose declarou ao site britânico Grocery Gazzete que houve um aumento na procura por produtos da marca. "As buscas por banana passas e chás cresceram 42% em relação à mesma semana do ano passado e as buscas pela cerveja Duchy Golden Ale e bolo de chocolate amargo aumentaram 127%", disse o porta-voz.
Um dos programas apoiados pelo fundo é o Duchy Future Farming Programme, em parceria com a Waitrose e a Soil Association, entidade que promove a produção orgânica no Reino Unido. A iniciativa reúne produtores, pesquisadores e representantes do mercado em busca de tecnologias que melhorem o manejo das propriedades e o desenvolvimento sustentável de suas produções.
O futuro da marca
Com a coroação de Charles e a mudança de agenda, o controle da Duchy Originals passou automaticamente a pertencer ao príncipe William, que herdou do pai o título de Príncipe de Gales e Duque da Cornuália.
Vieira e Silva explica que o Ducado da Cornuália se tornou um conjunto de propriedades privadas em 1337 e desde então é passado para o filho primogênito do monarca, com o objetivo de prover o sustento dele e de sua família.
Segundo relatório de 2022 do Ducado, todas as propriedades do território, incluindo fazendas, casas e outros tipos de imóveis somam uma área de 52.449 hectares, sendo 2,8 mil hectares compostos por florestas e cerca de 260 fazendas. O valor estimado da área é de 1 bilhão de libras (R$ 6,14 bilhões). Em geral, as propriedades são arrendadas para outros produtores.
Durante o tempo em que esteve à frente da empresa, Charles participou ativamente não só da gestão, mas do desenvolvimento dos negócios. Vieira e Silva explica que com o passar dos anos, ele estudou e aprimorou as técnicas de cultivo e de bem-estar animal a ponto de se tornar profundo conhecedor de tais assuntos.
“Tanto é que no início, Charles era chamado por alguns setores britânicos de ‘príncipe das batatas’”. Com a mudança na gestão da companhia, os britânicos agora especulam se o príncipe William terá a mesma dedicação ao negócio, a exemplo do pai.
Mesmo fora da Duchy Originals, o rei deve continuar defendendo as causas da produção agrícola sustentável em harmonia com o meio ambiente. Segundo Vieira e Silva, a posição do governo britânico e de outros países europeus é de ampliar os cuidados com o meio ambiente, incluindo não só a produção agrícola, mas também os processos industriais e de geração de energia, com foco nas emissões de carbono.
Ele explica que essa bandeira verde do monarca também pode ajudá-lo a se aproximar mais dos jovens britânicos. “A visão de Charles III sobre sustentabilidade, meio ambiente e questões climáticas está alinhada com o que os mais jovens pensam e pode se tornar um elo com uma parcela importante da população que não vê sentido na manutenção de uma monarquia”, conclui.