As contagens para definição dos ocupantes do Parlamento Europeu para os próximos cinco anos foram concluídas em meados de junho.
Os eleitores dos 27 membros da União Europeia não tiveram dúvida: estão cansados do centrismo político que marcou sua história nas últimas décadas. Centrismo que levou as políticas nacionais e o processo de integração a impasses que parecem insolúveis.
Das 720 cadeiras do Parlamento, pelo menos 413 pertencem hoje ao espectro do centro-direita e da direita. Representantes dos agrupamentos políticos Popular, Conservador e Nacionalista (Identidade e Democracia) ganharam 30 cadeiras em relação a 2019.
Socialistas, Liberais Sociais e Verdes perderam 44 cadeiras. Dezessete novos representantes, que não pertencem a nenhum dos principais agrupamentos políticos, acrescentaram fragmentação ao quadro.
No geral o Parlamento Europeu permanecerá um legislativo de centro, considerando que as possibilidades de governança incorporam os partidos de centro dentro da conhecida “grande aliança” entre centro-direita e social-democratas.
Mas as indicações dos eleitores são justamente de que os europeus cansaram do modelo.
Os maiores perdedores foram os liberais sociais, principalmente os de origem francesa pertencentes ao Partido Renaissance de Emmanuel Macron, conhecido como En Marche! até mudar de nome em 2022.
O impacto foi tão grande que o presidente francês decidiu convocar eleições nacionais para o final de junho, em uma tentativa tática e um tanto desesperada de tentar manter sua base política no Parlamento Francês diante do claro avanço da direita nacional francesa na esfera europeia.
Com mandato até 2027, o modelo de semipresidencialismo francês exige que Macron evite o desconforto da cohabitacion, o eventual governo de um presidente e um primeiro-ministro de grupos políticos opostos.
A antecipação da eleição francesa tem efeito sobre toda a Europa. Uma provável cohabitacion na França é sinal de mudança em várias políticas públicas nacionais e europeias nos próximos anos, com destaque para políticas de imigração, mudanças climáticas e Pacto Verde (com efeitos nas políticas comerciais), política externa e conflito na Ucrânia, entre outras.
Ainda que o Parlamento Europeu tenha certa limitação no destino legislativo das nações europeias, as eleições claramente antecipam um processo de reorientação política nas eleições nacionais para os próximos meses e anos.
Todas as democracias europeias e, porque não dizer, ocidentais, vêm passando por processo profundo de transformação. O enfraquecimento dos principais partidos políticos tradicionais está dando lugar a partidos mais distantes do centro.
A fragmentação de votos e partidos junta-se à volatilidade dos eleitores em todos os cenários nacionais. Muitos são os casos de aumento de abstenção e radicalismo.
As eleições europeias sinalizam o que se vê e verá adiante nas eleições nacionais: a alternância entre grandes partidos de direita e esquerda deixa de ser norma.
O sistema político está se redesenhando e é evidente a sensação de distanciamento do eleitor do representante burocrata, o povo distante da elite dirigente.
Partidos políticos tradicionais, abalados pelas fragmentações internas, geraram dissidências para partidos novos ou até então marginais, posicionados mais longe do centro e fortalecendo a polaridade.
A volatilidade eleitoral dá combustível às fragmentações partidárias quando se está diante de possibilidade de novos partidos vencerem eleições. E isso já aconteceu em vários países.
Na Itália, o Fratelli d'Italia vem da Alleanza Nazionale; na Espanha, o Vox, do Partido Popular; na Alemanha, o Alternative fuer Deutschland (AfD) tem dissidentes da democracia cristã do CDU; na França, La France Insoumise, do Partido Socialista; na Holanda, o BoerBurgerBeweging (Movimento Agricultor Cidadão), do Partido Democrata Cristão.
Na Dinamarca é notável a mudança de agenda do Partido Social-Democrata ao adaptar sua agenda de bem-estar universal para o bem-estar gradualmente reservado aos “nativos”.
Discursos mais radicais de novos partidos exigem que os tradicionais tentem adaptar seu discurso para não perderem mais eleitores.
Até no Reino Unido, as primeiras eleições gerais desde a formalização do Brexit, em 2020, apontam para uma vitória dos trabalhistas em julho.
Pesquisas indicam derrota dos conservadores, com espaço relevante perdido para os liberais e crescimento do Reform UK, partido nacionalista britânico que contribuiu de forma decisiva para o Brexit.
Os partidos se multiplicam e a polarização aumenta
A questão do enfraquecimento dos partidos centrais e tradicionais pode ser explicada pela falência do discurso do progresso pela produção e pelo consumo de bens e serviços, o crescimento como condição para a prosperidade e emancipação.
O discurso não entrega mais. A percepção das populações europeias é de distanciamento da elite burocrática dirigente. Uma elite que não percebeu a diferença entre valores fortes e antagônicos: conservadores veem risco à liberdade, que pode ser afetada pela tirania das minorias; socialistas apelam para o risco da pobreza causada pela desigualdade.
Houve um momento em que os partidos tradicionais focaram para o centro, como fez Tony Blair com o New Labor no final do século XX.
As “terceiras vias” serviriam de solução para a agenda comum da globalização. Mas o processo de centralização das ideias aniquilou os conceitos básicos de políticas públicas.
Os eleitores foram atrás de pragmatismo e ideologia e se dirigiram para longe do centro. Passaram a desconfiar de um domínio das mesmas elites centristas do universo da informação. Optaram pelas redes sociais para se afastar da agenda midiática aparentemente controlada pelos grupos políticos tradicionais.
O sentimento é crescente de que a política dos estados nacionais e suas decisões nos corredores das instituições democráticas perdeu espaço para grandes grupos econômicos e financeiros. E acrescenta-se a essa desconfiança uma agenda climática que nada faz senão ampliar e radicalizar as percepções sobre o futuro.
Ao descrever a catástrofe e o colapso iminente, condicionando a vida das pessoas à proteção do meio ambiente, a agenda ambientalista contribuiu para a polarização.
Os eleitores desconfiam dos dirigentes políticos ambientalistas e a transição que sugerem para a agenda do futuro
A sobriedade de consumo exigida pela elite ambientalista restringe a prosperidade material e não traz entusiasmo às massas. Os eleitores desconfiam dos dirigentes políticos ambientalistas e a transição que sugerem para a agenda do futuro.
Na Holanda, o Movimento Agricultor Cidadão nasceu de uma revolta de agricultores contra a meta do governo de reduzir os fertilizantes nitrogenados nas lavouras para cumprir as regulamentações europeias.
Na Alemanha, o sucesso do partido de direita AfD foi recentemente amplificado por sua oposição à anunciada proibição de caldeiras a gás pelo governo.
Na França, movimentos sociais como os Caps Vermelhos, em 2013, e os Coletes Amarelos, em 2018, se mobilizaram para protestar contra um imposto ecológico considerado injusto.
Nem é preciso citar a diferença entre os métodos de avaliação de pegada de carbono entre pobres e ricos para explicitar a desconfiança do eleitor europeu.
Quais os critérios de emissão e captação de carbono? Diesel doméstico é tributado enquanto querosene de aviação ainda não é? De onde vem a energia que abastece os carros elétricos europeus?
A polarização partidária trouxe de volta à pauta dos partidos uma certa nostalgia de uma era de desenvolvimento que de alguma forma se perdeu.
Se o futuro é temeroso, relembra-se de um passado glorioso. A lembrança de quando havia uma identidade cristã, iluminista, racional e cidadã.
A percepção de uma guerra cultural e de políticas identitárias aponta para a heresia da separatividade. Uma divisão que resulta na rejeição do Estado de Direito que protegeria as minorias e limitaria o poder da maioria com o efeito perverso de desintegrar a comunidade de cidadãos.
As consequências atingem europeus e não europeus. A polarização europeia e a ascensão de agendas da direita terão efeitos sobre as relações com Estados Unidos, Rússia, China e todo o mundo.
Para o Brasil atual, certamente mais um obstáculo para as relações com os europeus que olham com desconfiança os movimentos do país alinhando-se com China, Rússia e Hamas em posições que a Europa não compartilha.
Nas relações comerciais, um acordo birregional entre União Europeia e Mercosul, negociado há mais de 20 anos, não recebeu o apoio dos governos de centro e curiosamente não deverá receber apoio de governos de direita.
As razões mudam um pouco: para os progressistas, cláusulas ambientais e trabalhistas estariam mal formuladas no acordo (embora já assinado em 2022). Para conservadores e para a direita europeia, provavelmente para manter os privilégios da classe agrícola, o mercado e a identidade de sua agricultura protegida.
Em 2023 os parlamentos de sete países se recusaram a ratificar o acordo birregional. Áustria, Polonia, Bélgica, Holanda e França pediram ressalvas.
Na nova conjuntura ainda é improvável que inflação no preço de alimentos e de energia sirvam para mudar a posição. Não haverá acordo.
Fica a sensação de que a Europa tem que olhar ainda mais para dentro para ver se encontra aquilo que pode manter seus processos de integração vivo. Talvez os partidos de direita que assumem protagonismo possam dar conta do desafio.
Christian Lohbauer é cientista político e já foi diretor-executivo de diversas entidades representativas do agro como no setor de exportação de frango (Abef), suco de laranja (CitrusBR) e CropLife Brasil