Os seis Institutos de pesquisa e os 18 polos regionais da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta) geram, por ano, um retorno social de R$ 5 bilhões, segundo dados do governo de São Paulo. O mesmo governo que quer, agora, se desfazer de 20 mil hectares de áreas desses centros, ameaçando as próprias pesquisas, para arrecadar, no máximo, um total de R$ 1,16 bilhão - se considerado o valor estimado para a venda de todo o patrimônio a preços de mercado.
Cálculos feitos pelo AgFeed para o valor da terra consideraram, para o estado de São Paulo, um preço médio de R$ 58,2 mil por hectare, apontado pela Scot Consultoria em julho deste ano - é claro que os valores variam, conforme a região e as características de cada área, mas a estimativa, apenas para efeitos comparativos, leva em consideração a média.
Já os dados do legado anual da pesquisa agropecuária, de 2022, são da Apta e apontaram retorno social de R$ 19,90 bilhões entre 2018 e 2021.
O relatório da Apta mostrou também um investimento de R$ 1,23 bilhão em pesquisas públicas agropecuárias naquele quadriênio em São Paulo. Ou seja, em quatro anos foram aportados na ciência pouco mais do que o governo quer arrecadar com o feirão caso comercialize os 20 mil hectares disponíveis.
A discrepância de valores entre o social e o capital explica a celeuma causada pela proposta do governo de São Paulo de negociar as terras de institutos locais de pesquisa. Críticos da ideia afirmam que as pesquisas serão prejudicadas, mas o governo sustenta que muitas áreas são subutilizadas e podem ajudar a engordar seu caixa.
O próprio governo também admite que não conseguirá vender todas as propriedades e nem a área total avaliada. Algumas têm áreas de reserva legal e de preservação permanentes sem valor comercial, que devem ser desmembradas.
Fazendas e áreas inutilizadas, como antigos centros de pesquisa sem operação. Áreas desmembradas de centros de pesquisas, incluindo um “apêndice” da polêmica Fazenda Santa Elisa, em Campinas (SP). Qualquer hectare que não seja utilizado para melhoramento genético animal e vegetal. Esses são os alvos prioritários do "feirão de imóveis" ligados à Secretaria de Agricultura que o governo do Estado de São Paulo.
Com suporte na lei estadual nº 16.338, de 2016, foram selecionados mais de 40 imóveis com um total de mais de 20 mil hectares, muitos deles com centros de pesquisas, para serem vendidos à iniciativa privada.
A primeira tentativa de vendas foi on-line e acabou mal sucedida. Em abril, o governo de São Paulo chegou a colocar no ar um site em que oferecia diversos imóveis, incluindo as propriedades rurais, e também outras urbanas, como a Pinacoteca, Jardim Botânico e o quartel da Rota, em regiões valorizadas da cidade de São Paulo.
Na sequência vieram críticas e questionamentos jurídicos, que levaram o governo paulista a suspender o processo e tirar o site do ar.
Sem qualquer regularização fundiária na maioria das áreas, o governo partiu então para o processo de georreferenciamento e delimitação das propriedades. Para isso, acionou a Fundação Instituto de Terras (Itesp). Técnicos do órgão já percorrem as propriedades para fazerem o levantamento.
No entanto, segundo relato de pesquisadores e funcionários de centros de pesquisa ao AgFeed, a base de dados utilizada são os memoriais descritivos anexados ao projeto que, em 2016, se transformou na lei que autoriza as vendas das terras e imóveis ligados à Secretaria da Agricultura.
Detalhe: à época, esses memoriais foram desqualificados pelos contrários ao projeto por terem sido assinados todos em um mesmo dia e por um mesmo técnico, que nunca teria visitado algumas das áreas.
A série de polêmicas de oito anos atrás foi retomada com a nova tentativa do governo, agora sob o comando de Tarcísio de Freitas, de engordar o caixa do governo com as terras públicas. Algumas são anexas a áreas urbanas de municípios populosos como Campinas, Jundiaí e Ribeirão Preto e alvo de construtoras e empresas do setor imobiliário.
Entre elas está a Fazenda Santa Elisa, situada em Campinas e ligada ao Instituto Agronômico (IAC), centro estadual de pesquisas de culturas como café e macaúba. Em entrevista ao AgFeed, o subsecretário de Agricultura do Estado de São Paulo, Orlando Melo de Castro, deixou claro que ao menos parte da fazenda, com cerca de 15 hectares, entrará no "feirão" de imóveis rurais do governo.
“A Santa Elisa tem uma área lá que é um apêndice que nunca foi usado. É uma área de capim. Está lá, eu conheço”, afirmou Castro, que foi diretor do IAC entre 2004 e 2008, entre os governos de Geraldo Alckmin e José Serra. “Aí tem uma outra área que tem café e o pessoal alega que aquilo lá é uma coleção. Mas que não consta dos mapas de coleções. Se é uma coleção importante para o melhoramento de café do IAC, será preservada. Mas se não for, por que manter como uma área de café, sem uso?”, completou o subsecretário, que comanda o processo de inventário das terras.
A Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) rebate as dúvidas do subsecretário sobre a importância da coleção e o “sem uso” sobre a área da Santa Elisa. De acordo com a APqC, o banco de germoplasma de café tem acessos considerados raros ou extintos de seu habitat e os estudos com macaúba despontam como alternativa para a fabricação de biocombustíveis.
Um convênio para estudos nesse sentido foi firmado há poucos meses entre o IAC e a Acelen, empresa do fundo árabe Mubadala Capital que possui um projeto de R$ 12 bilhões para a transformar a planta em biodiesel e combustível sustentável para a aviação (SAF).
Cerca de 90% das pesquisas cafeeiras realizadas pelo IAC na Santa Elisa são financiadas pelo Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé), do Ministério da Agricultura, e por meio de convênios com o Consórcio Pesquisa Café, coordenado pela Embrapa, relata a associação.
“Há ainda aportes da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de outras instituições de fomento e da iniciativa privada. Inclusive, a manutenção do banco de germoplasma é feita totalmente com recursos extraorçamentários oriundos dessas fontes, já que não existem recursos orçamentários próprios do Estado para essa finalidade”, informou a APqC.
Dados do Instituto de Economia Agrícola (IEA), outro órgão do governo paulista, estimam um valor máximo de R$ 93,4 mil para o hectare em Campinas. Na ponta do lápis, os 15 hectares citados por Castro estariam avaliados em R$ 1,4 milhão, um valor ínfimo pela localização privilegiada do imóvel rural.
Outras áreas
Castro nomeou ainda duas outras áreas que serão negociadas pelo governo paulista. Uma fazenda com menos de 70 hectares, localizada em Gália, município de 6,4 mil habitantes a 400 quilômetros de São Paulo, onde funcionou no passado uma estação de pesquisa com o bicho-da-sêda e que não tem mais atividades científicas. “Foram tentadas outras atividades, como café, mas não virou. Então, é uma fazenda hoje subutilizada”.
Se considerados os dados do IEA, 70 hectares de terra para agricultura em Gália são avaliados em R$ 3,32 milhões, com o preço médio de R$ 47,4 mil o hectare.
Outra área é a Estação Experimental de Ubatuba, no litoral paulista, uma área de 500 hectares utilizada para hibridação de cana-de-açúcar, que deixou de ser utilizada. Essa propriedade tem apenas 30 hectares fora da área de preservação permanente da Mata Atlântica e, de acordo com Castro, a ideia é tentar negociá-la com a Secretaria do Meio Ambiente ou com outras entidades do próprio governo para outras finalidades.
Nas palavras de Castro, apenas áreas de reserva legal, de preservação permanente (APPs), e aquelas consideradas “importantes para pesquisa, seja melhoramento de planta ou área animal”, não serão afetadas. O subsecretário não explicou qual o critério - subjetivo ou objetivo - será adotado para definir quais serão essas áreas “importantes para pesquisas”, mas deixou claro que fatias de fazendas, mesmo as com pesquisas em andamento, serão vendidas.
“Tem fazendas muito grandes: 800, 1 mil hectares, 2 mil hectares, 3 mil hectares, tem fazendas desse tamanho. Precisa de tudo isso? Ou uma fazenda de 3 mil hectares, 1,5 mil hectares, 2 mil hectares são suficientes para fazer atividade-fim?”, questiona Castro.
Propriedades exploradas por terceiros no modelo de arrendamento também entrarão na lista, segundo Castro, que completou que os recursos recebidos com os negócios podem ser destinados para um fundo de financiamento de pesquisas. Mas também podem ir diretamente para os cofres públicos, sem destino carimbado.
Isso porque o parágrafo único do inciso II do artigo terceiro da lei nº 16.338, de 2016, determina que “o poder executivo poderá incluir na proposta orçamentária anual, dotação específica vinculada ao órgão responsável pela administração do imóvel alienado, em valor equivalente até o produto da alienação”.
Ou seja, cabe ao governo decidir se devolverá ao órgão, ou não, de zero a 100% do valor arrecadado com a venda dos imóveis rurais e terras de centros de pesquisa.
Dinheiro acaba, pesquisa não
A presidente da APqC, Helena Dutra Lutgens, mantém as críticas à iniciativa do governo de vender áreas de institutos de pesquisa do Estado. “Essa lógica de vender áreas de pesquisa para fazer caixa é um contrassenso. Primeiro porque o dinheiro da venda logo vai acabar, enquanto a pesquisa científica, a partir do conhecimento gerado, agrega valor aos produtos, gerando muito mais receita para economia do Estado ao longo de décadas”, argumentou.
Além da associação, setores da sociedade se uniram contra a intenção do Estado de vender áreas dedicadas à pesquisa. A Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp) enviou ofício ao governador pedindo que a área do IAC não seja vendida. Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), deputados solicitaram informações à Secretaria de Agricultura sobre a intenção de mapeamento e desmembramento de áreas de pesquisa.
Uma moção contra a venda também foi aprovada pela Câmara Municipal de Campinas e um abaixo assinado foi criado pela preservação das áreas de pesquisa.
Com reportagem de Italo Bertão Filho.